O Bom Pastor:

Formação do Clero da Arquidiocese de Braga

27.3.07

O ROSTO DE JESUS





Hoje parei uns minutos numa livraria a folhear um livro. Foram momentos em que a eternidade parecia ter-me invadido. Um livro sobre os rostos de Jesus na arte. O Rosto do abandono, de Paul Gauguin. O Rosto da piedade, de Bellini. O Rosto da luz, de El Greco.
É impressionante como os artistas são capazes, à sua maneira, de revelar a beleza e curar as feridas da humanidade devolvendo-nos o Rosto que nos aproxima do coração de Deus.

26.3.07

Há muito que fazer e ensinar...


“A escola e a família deveriam ter como missão essencial educar para a paz. Teriam muito que fazer e ensinar. Uma das coisas a fazer seria mostrar, mais do que explicar, que a felicidade não é um direito, antes é um dever. Que eu não tenho o direito de ser feliz, mas sim o dever de fazer felizes os outros, e assim ser feliz. Esta seria uma óptima maneira de promover a paz.”

Vasco Pinto Magalhães, s.j.

24.3.07

V Domingo da Quaresma


V DOMINGO DA QUARESMA
ANO C

Jo 8, 1-11


Tal como nos domingos precedentes, também a página evangélica de hoje constitui um urgente convite a meditar sobre a misericórdia de Deus narrada por Jesus Cristo no meio dos homens: a misericórdia, capaz de recriar o homem e de abrir um futuro a quem já não tem nenhuma esperança, pode impelir-nos à conversão dos nossos pensamentos e das nossas acções. É além disso significativo que o nosso texto tenha sido colocado no quarto evangelho só depois de ter peregrinado de um evangelho a outro, porque o seu conteúdo era considerado escandaloso pelos próprios cristãos…

De manhã cedo, Jesus dirige-se ao templo de Jerusalém e o povo acorre a Ele para escutar o seu ensinamento. E eis que se avizinham dele alguns escribas e fariseus: estes não suportam que Jesus tenha «vindo chamar os pecadores, não os justos» (cf. Lc 5, 32), nem conseguem perceber que ele «acolha os pecadores e coma com eles» (cf. Lc 15,2); tanto menos podem aceitar que ele lhes dirija a palavra: «os publicanos e as prostitutas vos precederão no reino de Deus» (Mt 21,31). Por isso «conduzem até si uma mulher surpreendida em adultério e, colocada no seu meio, dizem-lhe: ‘Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante adultério. Ora, Moisés na Lei mandou que se lapidasse mulheres como esta. Tu que dizes?». O seu recurso à Lei é formalmente correcto (cf. Lv 20,10; Dt 22, 22-24), mas o seu coração está habitado pelo ódio e por más intenções: «tentam» Jesus, metem-no à prova para encontrar uma contradição entre ele e a Lei de Deus, de modo a poder condená-lo.

Eles esperam uma resposta, mas Jesus limita-se a escrever ironicamente com o dedo na terra até que, depois de muita insistência, exclama: «Quem de vós não tiver pecados atire a primeira pedra contra ela» Mas quem de nós não tem pecados? Em última instância, somo hábeis a esconder com cuidado os nossos pecados, apressando-nos a acusar com mais violência quem é forçado a mostrá-los publicamente: e assim não percebemos que o pecador manifesto é apenas o sinal visível da condição de cada um de nós, todos pecadores, todos necessitados da misericórdia de Deus como do pão quotidiano… Só Jesus, não tendo pecado (cf. 2 Cor 5,21; Heb 4,15; 1Jo 3,5), poderia atirar a pedra, mas não o faz. Então os acusadores retiram-se de mansinho, «um por um, a começar pelos mais velhos», deixando Jesus sozinho com a mulher: «ficaram só os dois, a mísera e a misericórdia», comenta com grande inteligência Santo Agostinho.

E eis a extraordinária conclusão da narração: «Levantando-se, Jesus disse-lhe: ‘Mulher, onde estão? Ninguém te condenou?». Ela respondeu: «Ninguém, Senhor». E Jesus a ela: «Nem eu te condeno; vai e não voltes a pecar». Chamado a escolher entre a Lei e a misericórdia, Jesus escolhe a misericórdia sem se colocar contra a Lei, porque sabe distinguir o pecado do pecador. A Lei é essencial, qual instância capaz de indicar o pecado; mas uma vez infringida a Lei, diante do pecador concreto, deve reinar a misericórdia! Nenhuma condenação, só misericórdia: aqui está a unicidade de Jesus, comparando com o Antigo Testamento, mas —diga-se— também comparando com os comportamentos registados na vida da Igreja nascente. Porque sempre que Jesus encontrou um pecador absolveu-o dos seus pecados e nunca praticou uma justiça punitiva; exortou com força, pronunciou os «Ai de vós!» em vista do juízo, mas nunca castigou ninguém: Jesus sabia distinguir entre a condenação do pecado e a misericórdia para com o pecador.

Esta é a mensagem desconcertante da misericórdia de Deus que apaga todo o pecado, do seu perdão preveniente, mesmo a respeito da nossa conversão. Aqui está a singularidade escandalosa de Jesus, refutada por quem se sente justo, acolhida pelos pecadores: quem se reconhece pecador, de facto, pode experimentar que a misericórdia de Deus em Jesus Cristo torna possível cada dia um novo inicio. E assim é dado a cada um a capacidade de usar de misericórdia para com os outros, todos pecadores, todos cobertos da inexaurível misericórdia de Deus.

Enzo Bianchi
Prior de Bose
[Trad: Mário Rui de Oliveira]

21.3.07

dia da poesia, dia da primavera

(Botticelli, «Primavera»)


exercício espiritual

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocencia
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer Aurora

Mário Cesariny

19.3.07

Centro de Apoio à Família e à Vida


A Arquidiocese de Braga está a dedicar três anos à Pastoral da Família (2005/2008).
O Departamento Arquidiocesano da Pastoral Familiar, tem como função, antes de mais, coordenar todas as iniciativas nesta área. Por isso, procura manter uma ligação estreita com os Movimentos do âmbito familiar, os Arciprestados e as Paróquias, que são as unidades fundamentais da organização diocesana.
Depois de muita reflexão e de esforços efectuados em anos anteriores, chegou o momento, neste ano dedicado à “Família Solidária”, de criar um Centro de Apoio à Família e à Vida.
No plano pastoral, o Sr. Arcebispo Primaz D. Jorge Ortiga dizia-nos para que “fôssemos [estruturas diocesanas, arciprestais e paroquiais] capazes de delinear um projecto pastoral audacioso, corajoso e aberto, onde a evangelização ocupasse a prioridade numa atitude de diálogo cultural verdadeiramente conhecedor da realidade. Não podemos repetir esquemas tradicionais ou peregrinar na manutenção do sempre dito ou feito. A pastoral não se impõe a partir de esquemas rígidos. Nasce da realidade e torna-se proposta que responde aos anseios e perplexidades. Das certezas da doutrina vamos ao encontro dos reais problemas com iniciativas que pretendemos convincentes”.
Com o tema deste ano — Família Solidária — pretende destacar‑se uma prioridade: a dimensão da diakonia, do serviço a cada família: “Queremos ser família diocesana, família paroquial solidária com todas as famílias, partilhando, como companheiros de viagem, as coisas simples e essenciais da vida, descobrindo soluções para os problemas que provocam tanta angústia nas nossas famílias e ajudando-as a serem a boa notícia para o mundo de hoje.”
Face a toda a problemática da família e dos ataques à vida nos dias de hoje, o Departamento da Pastoral Familiar (DPF), o Instituto Secular das Cooperadoras da Família (ISCF) e o Centro de Acolhimento e Formação Jovens em Caminhada (CAFJEC) aceitaram o desafio, com muita esperança, de abrir, na cidade de Braga, um Centro de Apoio à Família e à Vida (CAFVIDA).

Definiram-se os seguintes objectivos para este serviço:
- Atender casais em dificuldade, nomeadamente nas suas relações conjugais e no relacionamento com os filhos;
- Defender a vida (é o elemento com evidência no logótipo Cafvida) como um valor absoluto desde a sua gestação até à morte natural.
- Acompanhar famílias em situações problemáticas e conflituosas;
- Organizar cursos de formação e prevenção sobre aspectos relacionados com a juventude e a família.
- Apoio à maternidade e de modo particular à problemática da gravidez na adolescência.

As condições de funcionamento serão as seguintes:
- O ISCF assumirá, institucionalmente, a criação deste serviço, como um modo de concretizar o seu carisma;
- A sede do CAFVIDA é nas instalações do ISCF;
- O atendimento e a triagem é da responsabilidade do ISCF;
- O DPF, como entidade “inspiradora”, dará todo o apoio necessário, nomeadamente na divulgação[1], nas despesas e no acompanhamento de todo o processo.

Este projecto concretiza-se, já que o CAFJEC aceitou colaborar neste desafio e na medida em que há pessoas especializadas em diversas áreas sociais que aceitaram dar um pouco de si, pela Família.
Este serviço começa por integrar uma equipa interdisciplinar de voluntários, com diversas formações específicas, que, gratuitamente, se dispõem a colaborar neste projecto. A equipa é constituída por uma assistente social, juristas, psicólogos, médicos, um sacerdote e uma coordenadora do serviço e responsável pelos atendimentos.
Os contactos poderão ser feitos pessoalmente, através de telemóvel (912265154) ou correio electrónico (cafvida@gmail.com) e a qualquer hora. Depois do atendimento, as pessoas serão encaminhadas, sempre que necessário, para os respectivos técnicos. Eventualmente, um caso poderá envolver mais do que um técnico e, muito provavelmente, mais do que um atendimento. Teremos uma rede de instituições que darão todo o apoio aos casos que suscitarem uma intervenção mais prolongada e que merecerem internamento ocasional.
Este serviço é confidencial e gratuito, podendo servir para esclarecer dúvidas, ou até mesmo encontrar respostas sobre o amor, o namoro, o casamento, a relação com os filhos, os conflitos, etc..., constituindo-se como um espaço de apoio, uma expressão de solidariedade, uma proposta de ajuda à família.
Tentaremos ajudar através da escuta, do acolhimento, da aceitação incondicional de cada pessoa e da compreensão empática dos seus problemas, aconselhando e encaminhando se necessário, para outras instituições ou serviços, de acordo com os casos.


Departamento Arquidiocesano da Pastoral Familiar - Braga


[1] Acresce referir que a divulgação do CAFVIDA é feita através de desdobráveis e cartazes distribuídos pelas paróquias da Diocese de Braga e, sempre que possível, através dos jornais locais e nacionais, correio electrónico, bem como através da página da internet da Diocese de Braga.

CAFVIDA




Para lá da estética...

"Dar-vos-ei um coração novo e introduzirei em vós um espírito novo: arrancarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei um coração de carne" (Ez 36, 26).

17.3.07

Sem titulo: Duane Michals










SOBRE UMA FOTOGRAFIA DE DUANE MICHALS
Uma fotografia é muito mais do que aquilo que se vê. Viajo por uma sequencia de imagens.
O filho regressa, talvez do mundo, talvez disso que o mundo tem de solitário, de aflito, de remoto. Consigo imaginar o sofrimento expresso na sua nudez, ainda jovem. Mas a vulnerabilidade do pai que despe, uma por uma, suas próprias roupas e reveste, com elas, o filho, desconcerta-me ainda mais.
No cima da página, a legenda: O regresso do Filho Pródigo.
Mas podia ser também a história do amor. De todo o amor.
in O Vento da Noite, Assirio e Alvim, 2003.

IV Domingo Quaresma


IV Domingo da Quaresma
Ano C

Lc 15,1-3.11-32




No texto evangélico de hoje Jesus anuncia a misericórdia gratuita e preveniente de Deus, força capaz de converter as nossas vidas. E realiza-o com uma das parábolas mais conhecidas, que os padres da igreja definiam «o Evangelho no Evangelho»: a chamada parábola do «filho pródigo», definível ainda melhor como a parábola do «Pai pródigo de amor»…

O excerto evangélico que a contem diz assim: «Aproximaram-se de Jesus todos os publicanos e pecadores. Os fariseus e os escrivas murmuravam: ‘Este recebe os pecadores e come com eles’. Então Jesus disse-lhes esta parábola…». Jesus explica a sua preferência pela companhia dos pecadores manifestos, aquela que tinha levado os «homens religiosos» a acusá-lo de ser «amigo dos publicanos e pecadores» (Lc 7,34). Eles, tão cegos a ponto de não se reconhecerem pecadores, não percebiam que Jesus tinha ‘vindo procurar e salvar o que estava perdido» (Cf. Lc 19, 10): quem mais que um pecador publicamente reconhecido, apontado como «perdido», pode desejar a mudança? Ele é o sinal manifesto da condição de cada um de nós: Deus espera só que nos reconheçamos pecadores e aceitemos que ele cubra as nossas quedas com a sua inexaurível misericórdia. É quanto Jesus afirma na conclusão das duas pequenas parábolas que precedem a nossa: «Há mais alegria no céu por um pecador convertido, que por noventa e nove justos que não precisam de conversão» (Lc 15,7; cf. 15, 10).

«Um homem tinha dois filhos. O mais jovem disse ao pai: ‘Pai, dá-me a parte do património que me espera’. E o pai dividiu entre eles a herança’. Pedindo ao pai a própria parte de herança é como se o filho o declarasse morto; mas o pai consente, deixa que o filho pise o seu amor. E assim o filho «parte para um país longínquo, onde gasta os seus bens vivendo de modo insensato». A via em que desembocou revelou-se mortífera, e rapidamente se encontra na necessidade, sendo forçado a apascentar porcos (animais impuros por excelência para os judeus). «Bem desejava saciar-se com as alfarrobas que comiam os porcos, mas ninguém lhas dava»: poderia pegar nelas ele mesmo, mas o que lhe falta é alguém que partilhe o alimento com ele, que lhe dê numa relação de amor…. Então «entra dentro de si mesmo»: não se trata de um motivo de conversão, mas de tomada de consciência da sua condição penosa. O jovem pensa: «Levantar-me-ei, irei ter com meu pai e lhe direi: ‘Pai, pequei contra o céu e contra ti; não sou mais digno de ser chamado teu filho. Trata-me como um dos teus criados’». Nenhum arrependimento o move, mas apenas a avaliação oportunista do que é mais conveniente. Ele continua a raciocinar numa lógica de justiça retributiva: realmente não conhece o coração do pai…

E aqui a parábola chega ao seu ápice: «Partiu e se dirigiu para seu pai. Quando estava ainda longe, o pai viu-o e comovido correu ao seu encontro, lançou-se ao seu pescoço e beijou-o». Depois o pai ordena aos servos que o revistam com o traje mais belo, que lhe metam um anel no dedo, as sandálias nos pés e que matem um vitelo gordo: deve começar uma grande festa porque — diz o pai— «este meu filho estava morto e tornou à vida, estava perdido e foi reencontrado». Devastado por esta superabundante misericórdia, o filho consegue dizer apenas algumas palavras que tinha ensaiado: é neste momento que ele compreende que o pai não só o esperou desde sempre, mas o amou enquanto ele o odiava, «quando estava ainda longe». Eis a revelação desconcertante, sintetizada naquele abraço cheio de amor que o converte: Deus não ama o pecado dos homens, mas ama-nos no nosso pecado, ama-nos enquanto nós somos seus inimigos (cf. Rom 5,6-10)…

A parábola poderia terminar aqui, mas Jesus quer revelar-nos também a reacção do irmão mais velho, o qual se demonstra incapaz como o outro de compreender o amor do pai. Ele ficou em casa, vivendo como escravo, não como filho (cf. Jo 8,35); só por medo não transgrediu o mandamento do pai. Agora enfureceu-se, não se capacita que o pai possa fazer festa pelo seu irmão: e assim sai, revelando a verdadeira imagem do pai-patrão que habita o seu coração bem como o desprezo para com o irmão («esse teu filho»). Também a ele o pai vem ao encontro, pedindo-lhe que entre na festa: «é preciso fazer festa, porque este teu irmão estava morto e regressou à vida, estava perdido e foi reencontrado»…

Sim, a atitude dos dois irmãos é um convite a verificar a nossa resposta à misericórdia do Pai, revelada definitivamente em Jesus Cristo, única força realmente capaz de converter-nos. Esta de facto é a conversão: acreditar no amor de Deus por nós e acolher com um coração livre a sua inexaurível misericórdia. Só assim poderemos usar então de misericórdia para com os nossos outros irmãos, para com todos os nossos irmãos.

Enzo Bianchi
Prior de Bose

[trad: Mário Rui de Oliveira]

Abel, levanta-te


Abel, levanta-te
tem de se repetir a cena
cada dia tem de se repetir a cena
cada dia a resposta tem de estar ainda diante de nós
a resposta tem de ser «sim»
se não te levantas Abel
como poderá a resposta
a única resposta importante
vir a modificar-se
podemos fechar todas as igrejas
e abolir todas as leis
em todas as línguas do mundo
somente se te levantas
e fazes voltar atrás
a primeira falsa resposta
à única pergunta
que é essencial
levanta-te
para que Caim diga
para que possa dizer
Eu sou o teu guardião
Irmão
como poderia não ser o teu guardião
Levanta-te cada dia
para que possamos ter ainda diante de nós
esse Sim estou aqui
eu
o teu Irmão
Para que os filhos de Abel
não tenham mais medo
porque Caim não será mais Caim

Escrevo isto
eu um filho de Abel
e todos os dias tenho medo
da resposta
nos meus pulmões o ar escasseia
enquanto espero pela resposta

Abel levanta-te
para que entre nós todos
tudo recomece de outra maneira

Os fogos que ardem
o fogo que arde na Terra
tem de ser o fogo de Abel

Hilde Domin

16.3.07

A ESMOLA



Lembro muitas vezes o José, o pedinte. Havia gente que atravessava a rua só para cruzar com ele. Um mistério parecia habitá-lo. A quem passava lançava um sorriso que fazia lembrar o sol. Cantava e era feliz. Estendia a mão agradecendo com uma benção. José, o pedinte, podia depositar um segredo no bolso de cada um. Porque todos, afinal, somos pedintes. Porque a nossa vida precisa sempre de um sorriso, de uma palavra amiga, de uma canção ou de uma benção.

[Mário Rui de Oliveira]

14.3.07

Sacramentum caritatis

(Tintoretto, «A Ultima Ceia», Veneza)

EXORTAÇÃO APOSTÓLICA
PÓS-SINODAL
SACRAMENTUM CARITATIS
DE SUA SANTIDADE
BENTO XVI
AO EPISCOPADO, AO CLERO
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E AOS FIÉIS LEIGOS
SOBRE A EUCARISTIA
FONTE E ÁPICE DA VIDA
E DA MISSÃO DA IGREJA

Os divorciados recasados e a Igreja

(Rafaello Sanzio)


«A crise da instituição familiar encontra, no nosso tempo, uma das suas mais dramáticas expressões na fragilidade do vínculo matrimonial. Muitos casamentos, mesmo celebrados canonicamente entre fiéis católicos, acabam no divórcio civil e dão frequentemente origem a segundos casamentos por parte de ambos ou, pelo menos, de um dos cônjuges divorciados. A extensão do fenómeno e o facto de esse segundo casamento não poder ser sacramental, colocando os crentes em ruptura de consciência perante a Igreja como comunhão e caminho de fidelidade a Jesus Cristo, está a transformar-se num problema de grandes dimensões existenciais e, consequentemente, pastorais para a própria Igreja. […]
Partimos da afirmação clara da solicitude maternal da Igreja por esses seus filhos a quem as dificuldades da vida, aliadas à fraqueza humana, colocaram em situação difícil. A Igreja não os abandona e esforçar-se-á infatigavelmente por proporcionar-lhes os meios de salvação, porque “está firmemente convencida de que, mesmo aqueles que se afastaram do mandamento do Senhor e vivem agora nesse estado, poderão obter de Deus a graça da conversão e da salvação”. Isto mesmo lhes diz João Paulo II, em palavras repassadas de amor pastoral: “Saibam estes homens e estas mulheres que a Igreja os ama, não está longe deles e sofre pela sua situação”. Esse deve ser o primeiro fruto da nossa solicitude pastoral: fazer com que eles não se sintam abandonados ou excluídos da Igreja.»
(Conferência Episcopal Portuguesa, Carta Pastoral A Família, esperança da Igreja e do mundo, Maio 2004,nº 46)

As situações de casais divorciados recasados colocam questões delicadas sobretudo na participação na vida da Igreja. A Exortação Apostólica de Bento XVI, sobre a Eucaristia, afirma a centralidade da Eucaristia no ser e agir da Igreja, as consequências na vida matrimonial.
Neste documento, o Papa recorda que “o Sínodo dos Bispos confirmou a prática da Igreja, fundada na Sagrada Escritura, de não admitir aos sacramentos os divorciados re-casados, porque o seu estado e condição de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja que é significada e realizada na Eucaristia” (29). Todavia, sugere-se que cultivem um “estilo de vida cristão”, para o qual a solicitude pastoral deve contribuir.
Nos casos em que podem surgir dúvidas sobre a “validade do Matrimónio”, “deve fazer-se tudo o que for necessário para verificar o fundamento das mesmas”. Para isso, pede aos Tribunais Eclesiásticos uma a “actividade correcta e pJustificarressurosa” (29).

• Como temos conseguido ser testemunho ou estímulo da procura de um verdadeiro projecto de vida a dois, pautada por valores?
• Que ajudas tem a comunidade eclesial para fomentar a consciência e prevenção e oferecer apoio concreto a quem precisa: cursos para namorados, aconselhamento conjugal e familiar, estruturas de grupos de oração e entreajuda e outros encontrados a partir da especificidade da comunidade em causa?
• Como reconhecem as comunidades cristãs o direito dos divorciados recasados a uma vivência espiritual de modo a que não se sintam excluídos da Igreja?
• Como encaram os divorciados recasados a sua participação na vida da Igreja?

P.e Domingos Paulo Oliveira

As escolhas...


Em tempo de Quaresma, apelo constante à conversão e à mudança de mentalidade a partir da lógica evangélica, creio que vem mesmo a calhar este ditado de uma tribo de índios americanos:

“Quando nasceste choraste e o mundo alegrou-se. Vive a tua vida de forma que quando morreres o mundo chore e tu te alegres.”

No final da Quaresma deveríamos perguntar-nos: “Em que é que nos tornamos? Em que nos convertemos?”
P.e Francisco Miguel Carreira

11.3.07

A história...


"Em tempos li uma história que falava de um gafanhoto de um dia, um aventureiro muito verde que, ao fim da tarde, foi comido por um morcego.
Pouco depois, a sábia coruja proferiu um curto discurso fúnebre, dizendo: também o morcego quer viver e ainda há muitos gafanhotos no prado.
Imediatamente a seguir, vinha a página branca do fim.
Há quarenta anos que estou sentado, curvado sobre a página vazia. Falta-me a força para fechar o livro."

Dan Pagis

A descida ao coração...

(pequeno tapete persa de oração)


A oração. Dos imensos paraísos que perdemos a oração parece ser aquele que mais necessitamos. Quase não chega a ser uma arte, mas é graças a ela que nos elevamos ao céu. A oração é a descida de um coração a outro. A descida ao coração de Deus ou a descida de Deus ao coração. Nunca se sabe.

Mário Rui de Oliveira

10.3.07

III Domingo da Quaresma

(Figueira centenária)


Depois de nos ter apresentado as tentações de Jesus e a sua transfiguração, o itinerário quaresmal proposto pela Igreja neste ano litúrgico C é um convite a meditar sobre a misericórdia de Deus e que em Jesus Cristo sempre nos chama à conversão, isto é, a regressar ao próprio Deus com todo o coração, com toda a inteligência e com todas as forças.

O excerto de hoje do evangelho de Lucas coloca-se no coração da subida realizada por Jesus, com decisão, para Jerusalém (cf. Lc 9, 51), onde se cumprirá a sua paixão, morte e ressurreição. Jesus tinha acabado de pedir a quantos o escutavam que se exercitassem no discernimento dos sinais dos tempos, que avaliassem eles próprios o que é justo (cf. Lc 12, 54-57), e eis que alguns submetem à sua atenção um trágico facto da actualidade, tal como acontecem também hoje com frequência: eles falam «sobre aqueles galileus cujo sangue Pilatos tinha misturado com o dos seus sacrifícios». A mentalidade religiosa do tempo via nesses acontecimentos um sinal do castigo de Deus pelo pecado, fazendo ocasião de juízo sobre as vitimas…

Jesus, pelo contrário, sabe assumir este evento na fé, colhendo daí um convite à conversão. E fá-lo com nítidas palavras: «Pensais que aqueles homens eram mais pecadores que os outros? Não, eu vos digo, mas se não vos converterdes, perecereis todos do mesmo modo». E de seguida cita outro grave incidente, a queda da torre de Siloé, que tinha causado a morte de dezoito pessoas, comentando-o ainda com as palavras: «Se não vos converterdes, perecereis todos do mesmo modo». Nesta vida terrena não existe um castigo de Deus que caia sobre os injustos enquanto poupa os justos, mas a verdade é uma outra: todos somos pecadores, seja quem está morto seja quem escapa com vida, e «quem pensa de estar em pé, deveria estar atento para não cair» (cf. 1 Cor 10, 12)… Jesus não pretende amedrontar ninguém, mas quer ensinar-nos que todos os acontecimentos requerem uma compreensão profunda, rica de sabedoria: é preciso saber ler isso no coração, não como simples facto de crónica, mas colocá-lo na história, ou melhor, na história da salvação, aquela que Deus leva avante invisivelmente todos os dias. Só assim cada um poderá compreender, antes de mais por si, que «Deus não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva» (Cf. Ez 18, 23; 33, 11).

A fim de que isto seja claro, Jesus narra a parábola da figueira estéril, uma parábola por ele vivida na primeira pessoa. Deus, o dono da vinha (cf. Sal 80; Is 5), planta nela uma figueira; tentando por três longos anos aí colher frutos —aqueles «frutos de conversão» (Lc 3,8), já pedidos por João Baptista— não os encontra. Então dirige-se a Jesus, o vinhateiro, pedindo-lhe que corte a figueira porque se arrisca de tratar inutilmente o terreno. Trata-se de uma medida de justiça, à qual porém responde o vinhateiro: «Deixa-a ainda este ano para que eu a cave em redor e lhe deite adubo e veremos se no futuro dará fruto». Jesus não se limita a invocar uma dilatação do tempo, mas intercede com força, pedindo a Deus que desista do mal ameaçado, como tinham feito os profetas de Israel, de Moisés (cf. Ex 34, 9) a Amos (cf. Am 7,2), e tantos outros. No fazer isto ele empenha-se a trabalhar ainda com maior atenção a fim de que seja feito todo o possível para ajudar a planta, isto é, cada um de nós, a dar fruto…

Em todo o caso, Jesus Deixa a Deus a difícil decisão do juízo ultimo: «Se não der fruto, tu o cortarás, não eu». Nesta conclusão podemos colher a grandeza da misericórdia e paciência de Jesus, aquele que com toda a sua vida nos narrou o Deus que é «misericordioso e cheio de compaixão, lento para a ira, grande no amor e na fidelidade» (Ex 34, 5). Ora, se Jesus nunca condenou ninguém, mas sempre ofereceu a todos a possibilidade da conversão, tanto menos compete a nós erguermo-nos como juízes da fecundidade ou esterilidade dos outros! Eis porque, como muitas vezes acontece nas parábolas, também esta fica aberta, qual apelo a cada um de nós a dar frutos de conversão.

Jesus sabia bem que «a misericórdia leva sempre a melhor no juízo» (Tg 2,3). E é precisamente o conhecimento desta misericórdia de Deus, mais forte que a evidencia do nosso pecado, que nos pode impelir à conversão. Sim, cada dia o cristão deveria dizer com convicção: «Hoje recomeço, hoje posso recomeçar», sem nunca colocar limites à misericórdia de Deus.

Enzo Bianchi
Prior de Bose

[trad: Mário Rui de Oliveira]

9.3.07

UMA VONTADE MISTERIOSA DE RENASCER

(Van Gogh, «amendoeira»)

Uma vontade misteriosa de renascer parece habitar cada ser. Hoje, por exemplo, enquanto caminhava pelo lado esquerdo de um passeio distraía-me a olhar as árvores. Surpreendentes como milagres, as primeiras flores da primavera, cheias de força para rasgar os ramos solitários.
Se a primavera devolve às árvores o luxo das flores perfumadas quanto mais Deus oferece, a seus filhos, a possibilidade de renascer.

7.3.07

Os idosos na comunidade familiar



«A evolução médico-científica, a melhoria da higiene, da salubridade e das condições de vida globais, provocaram o aumento da esperança de vida. Como consequência, aumentou significativamente o número de pessoas idosas na sociedade actual. Trata-se de uma questão que, além do seu impacto óbvio nas estruturas sociais, laborais e económicas, tem também consequências sérias na comunidade familiar.
Muitos idosos, por vontade própria ou por exigência das circunstâncias, vivem sozinhos, numa situação de especial vulnerabilidade. Por vezes, essa realidade significa pobreza, isolamento, solidão, esquecimento, tristeza e desamparo, apesar do apoio e do acompanhamento das instituições de solidariedade social públicas ou privadas. […] As suas carências económicas não lhes permitem, muitas vezes, o acesso a determinados bens de primeira necessidade _ nomeadamente aos cuidados de saúde — nem o aproveitamento do tempo de lazer a que têm direito.
Muitos idosos estão, felizmente, integrados em comunidades familiares mais alargadas, constituídas pelos seus descendentes. […] A sua presença e a sua afectividade são particularmente importantes no apoio, no acompanhamento e na transmissão de valores às gerações mais jovens da comunidade familiar.
As necessidades particulares dos idosos dependentes — por motivo de deficiência profunda, doença grave ou idade avançada — constituem, contudo, uma realidade a que as famílias nem sempre conseguem dar a resposta adequada. A exiguidade e a falta de condições do espaço familiar, a dificuldade — por parte dos filhos — em conciliar a vida profissional com o acompanhamento dos pais em situação de dependência, constituem uma grave dificuldade experimentada por muitas famílias.»
(Conferência Episcopal Portuguesa, Carta Pastoral A Família, esperança da Igreja e do mundo, Maio 2004, nº 24)

Estas situações resultam num aumento da procura de instituições de terceira idade, que muitas vezes não satisfazem os requisitos mínimos. Por outro lado, verifica-se cada vez mais uma desresponsabilização das famílias relativamente ao acompanhamento dos seus idosos, culminando com o seu abandono nos hospitais. Em muitos casos, a família tem vontade de ajudar o idoso, mas não tem condições nem apoios para o manter em casa.
• Como temos conseguido desenvolver na nossa família a preocupação de tornar presente, na vida quotidiana, os valores essenciais que são o amor e a vida, concretamente no acolhimento, quer na convivência quer no apoio ou na integração das gerações mais idosas?
• De que estamos dispostos a prescindir para dar aos idosos das nossas famílias a atenção que lhes é devida?
• Que protagonismo têm os idosos na vida da nossa família?


P.e Domingos Paulo Oliveira

6.3.07

O SONHO DE DEUS

(Wim Wenders, «Asas do Desejo», Alemanha)

Na quaresma Deus também sonha. Deus sonha que nós, seus filhos, podemos ser mais que uma imagem desfocada Dele. Deus sonha que nós, que parecemos tão prisioneiros do mero consumo, reaprendemos a liberdade de criar. Deus sonha que todos os seus filhos levantam os olhos do chão e se voltam a apaixonar pela vida. Deus sonha que os nossos rostos podem transfigurar o seu próprio rosto. Deus sonha que cada um de nós descobre que os seus pesados braços podem ser asas e isso nos leva, hoje, a entrar, em casa, a sorrir.

5.3.07

Haverá ainda quem reze?

O tempo quaresmal olha para a oração como uma atitude a cultivar e a exercitar com maior intensidade. Mas nos dias que correm, perguntámo-nos se ainda há quem reze. Parece não haver tempo para a vida quanto mais para fazer uma paragem, mesmo que haja consciência que esta pausa seja também ela vida. Percebemos que os mais adultos têm esse belo costume de se recolher por uns instantes e, no seu coração, colocar o seu olhar sob a verdade da presença de Deus nas suas vidas. Mas quanto aos adolescentes e jovens não percebemos, de igual modo, esse recolher-se diante de Deus. Porque será que deixando a idade da infância, eles abandonam tão facilmente a prática da oração?
Se nos cristãos adultos a oração é expressão da intimidade, da relação afectiva, da elevação da alma, ou então do diálogo e conversa com Deus, porque será que o mesmo não o é nos adolescentes e jovens? Será a oração dos adultos muito exclusivista, centrada na pessoa que a faz, sem ser revelação de um amor vivido e também partilhado? Uma oração descomprometida, incapaz de vida convertida? Tudo isto leva ainda a outras questões: será que há realmente quem reze no sentido pleno da palavra? Ou seria melhor perguntar: como estamos nós a fazer oração?
O que realmente acontece é que para os adolescentes e jovens rezar é um peso. Parece não haver lugar para a relação ou para a intimidade. Rápida e tantas vezes mecânica a oração está desprovida de espírito, do sentido da relação, e sobretudo da proximidade e da presença de Deus. Pergunta-se então: o que faltará à oração da grande maioria dos homens?

Creio que não está a haver verdadeira transmissão do valor e sentido da oração, porque, se calhar e ao mesmo tempo, também não temos tido capacidade para fazer da oração comunitária o lugar educador para a confiança e familiaridade com Deus Pai. Há muito formalismo, muito ritualismo que, na maior parte das vezes, não chega ao coração. Descer ao coração e entrar no que é central à vida, há-de ser o trajecto da mente para estreitar e aprimorar a vida de amizade com Deus.
Sem descorar o que é ritual e sabendo da sua importância, não podemos deixar de introduzir no rito o dinamismo e a força de uma aventura arriscada no amor para chegarmos ao autêntico Amor; para escutarmos Aquele que nos fala ao coração; para vermos Deus a partir do nosso olhar interior; para que nos deixemos tocar e inundar da omnipresença de Deus. Falta-nos a sedução das palavras e o enlevo dos ritos. Falta-nos a beleza dos símbolos e a surpresa da música. Falta-nos a sensibilidade para fazer dos espaços de oração lugares apetitosos, lugares que dão sabor e gosto ao coração e à mente.

3.3.07

II Domingo da Quaresma

(Rafael Sanzio, «Transfiguração», Museu do Vaticano)


Se o primeiro Domingo da quaresma nos apresentou Jesus em confronto com a tentação, face a face com Satanás, na solidão do deserto, este segundo Domingo mostra-nos Jesus que conhece a transfiguração do seu rosto e de toda a sua pessoa, tornada participante da indizível glória do Pai. No itinerário quaresmal a transfiguração de Jesus indica o fim para o qual tende este caminho: a ressurreição, da qual a transfiguração é antecipação e profecia.

Alguns dias depois de ter anunciado aos seus discípulos a necessidade da sua morte e ressurreição (cf. Lc 9,22) e de lhes ter dito com clareza as condições para o seguir em tal caminho (cf. Lc 9,23-26), «Jesus tomou consigo Pedro, João e Tiago» —os três discípulos mais íntimos — «e subiu a um monte para rezar». Lucas é o evangelista que mais insiste na oração de Jesus: ele reza no momento do baptismo recebido de João (cf. Lc 3,21), reza antes de escolher os Doze (cf. Lc 6,12-13), reza na iminência da sua paixão (cf. Lc 22,39-46)…

E também a transfiguração de Jesus acontece no contexto da sua oração, no mistério do seu colóquio pessoalíssimo com o Pai: «enquanto rezava, o aspecto do seu rosto tornou-se outro». A oração é para Jesus espaço de acolhimento em si da Presença de Deus, Presença que é santidade, isto é, alteridade capaz de transfigurar aquele que aceita recebê-la radicalmente na sua vida: e, assim, o tornar-se outro do rosto de Jesus manifesta que agora ele narra o invisível rosto de Deus (cf. Jo 1,18). A oração, além disso, é comunicação de Deus a Jesus, mediada pela sua «conversa» com Moisés e Elias, que personificam a Lei e os Profetas, ou seja a Escritura do Antigo Testamento. Sim, a oração de Jesus é essencialmente escuta da palavra de Deus contida nas Escrituras, uma escuta que se torna colóquio com quem é vivente em Deus, uma verdadeira experiência da comunhão dos santos. É nesta oração que Jesus encontra a confirmação do seu próprio caminho, já orientado para a paixão, morte e ressurreição, e o colhe em continuidade com a história da salvação conduzida por Deus com o seu povo: eis porque Moisés e Elias falam com ele do seu «êxodo que teria de cumprir em Jerusalém», o êxodo deste mundo para o Pai. Não é por acaso que, pouco depois, se especifica que Jesus dirigirá com firmeza o seu rosto e os seus passos para a cidade santa (cf. Lc 9,51), decidido a viver aquilo que na oração compreendeu ser sua missão.

«Pedro e os seus companheiros, embora oprimidos pelo sono, despertaram e viram a sua glória e os dois homens que estavam com ele». Mas esta experiência extraordinária, que chega mediante uma luta para permanecerem vigilantes, dura apenas um momento: a transfiguração de Jesus é antecipação da comunhão que espera todos os homens no Reino, é a primícia do mundo completamente colocado sob o signo da beleza de Deus; mas, precisamente, é somente uma primícia… Eis porque enquanto Pedro, sem saber verdadeiramente o que diz, pede a Jesus para prolongar tal experiência mediante a construção de três tendas, a Nuvem da Presença de Deus (cf Ex 13,21-22; 16,10…) os envolve, e por ela chega uma voz que proclama: «Este é o meu Filho, o eleito: escutai-O!» O grande mandamento entregue a Israel: «Escuta, Israel!» (Dt 6,4), agora ressoa como… «Escutai-O a ele, o Filho!», a Palavra feita carne em Jesus (cf Jo 1,14), o homem no qual as Escrituras encontram o seu cumprimento (cf Lc 24,44). Isto é o essencial da nossa fé!

O Evangelho deste domingo coloca-nos, contudo, em alerta: Jesus não pode ser a projecção dos nossos desejos, mas é o Jesus Cristo segundo as Escrituras, e para o conhecer é preciso escutar, meditar e rezar a Palavra contida em todas as Escrituras. Tudo isto na consciência que a oração não nos isenta da canseira diária da obediência a Deus através de Jesus Cristo, ou seja, o cumprimento da nossa pessoal vocação; pelo contrário, a oração ajuda-nos a enchê-la de sentido, porque transfigura os acontecimentos e as relações de todos os dias. Assim foi para Jesus, assim pode ser também para nós.

Enzo Bianchi
Prior de Bose
[trad: Mário Rui de OLiveira]

Jejum: confissão de fé feita com o corpo

(Barnett Newman)


Assistimos hoje no ocidente a uma eliminação de facto da prática eclesial do jejum: assim uma práxis já vivida por Israel, reproposta por Jesus, acolhida pela grande tradição eclesial, está cada vez menos presente, não mais solicitada…E no entanto, para encontrar a verdade, aquela verdade humana que com a graça se torna a verdade cristã, é preciso pensar, rezar, partilhar os bens, conhecer o mal que nos habita, mas também jejuar, qual disciplina da oralidade. O comer pertence ao registo do desejo, vai alem da simples função nutritiva para revestir-se de conotações afectivas e simbólicas. O homem, enquanto homem, não se nutre apenas de alimento, mas de palavras e gestos trocados, de relações, de amor, isto é de tudo o que dá sentido à vida nutrida e sustentada pelos alimentos. O comer, de resto, acontece em conjunto, numa dimensão de convivialidade, de intercambio. A oralidade está ligada às dimensões do «comer», do «falar», do «beijar», portanto às dimensões biológica, comunicativa e afectiva da existência humana e por isso reenvia à totalidade da pessoa que «vive» destas dimensões. O jejum exerce assim a fundamental função de nos fazer saber qual a nossa fome, de que vivemos, de que nos nutrimos e de ordenar os nosso apetites em torno ao que é verdadeiramente central.

E todavia seria profundamente errado pensar que o jejum —na variedade das formas e graus que a tradição cristã desenvolveu: jejum total, abstinência das carnes, assumpção de alimentos vegetais ou somente pão e água—, seja substituível por qualquer outra mortificação ou privação. O comer reenvia ao primeiro modo de relação da criança com o mundo externo: a criança não se alimenta apenas do leite da mãe, mas inicialmente conhece a não distinção entre mãe e alimento; portanto nutre-se das presenças que o rodeiam: ele «come», recebe vozes, odores, formas, rostos, e assim, a pouco e pouco, se edifica a sua personalidade relacional e afectiva. Isto significa que a valência simbólica do jejum é absolutamente peculiar e que isso não pode encontrar «equivalentes» em outras formas de ascese que, revestindo-se de outras valências simbólicas, não podem desempenhar a sua função. Os exercícios ascéticos não são permutáveis! Com o jejum aprendemos a conhecer e a moderar os nossos muitos apetites através da moderação do aspecto fundamental e vital: a fome, e aprendemos a disciplinar as nossas relações com os outros, com a realidade externa e com Deus, relações sempre tentadas de voracidade. O jejum é ascese da necessidade e educação do desejo.

Só um cristianismo insípido e estulto que se compreende sempre mais como moral social pode liquidar o jejum como substancialmente irrelevante e pensar que qualquer privação de coisas supérfluas (portanto não vitais como o comer) pode substitui-lo. Esta é uma tendência docetista que torna «aparente» o carácter criatural da humanidade e que esquece seja a espessura do corpo seja o seu ser templo do Espírito Santo. Na verdade o jejum é a forma com a qual o crente confessa a fé no Senhor com o seu próprio corpo, é antídoto à redução intectualista da vida espiritual ou à sua confusão com o psicológico. […].

Sim, nós somos o que comemos, e o crente não vive apenas de pão, mas sobretudo da Palavra e do Pão eucarístico, da vida divina: uma práxis pessoal e eclesial do jejum faz parte da sequela de Jesus que jejuou (Mt 4,2), é obediência ao Senhor que pediu aos seus disicpulos a oração e o jejum (Mt 6,16-18; Mc 9,29; Act 13, 2-3; 14,23), é confissão de fé feita com o corpo, é pedagogia que leva a totalidade da pessoa à adoração de Deus (e note-se que a etimologia de ‘adorar’ contem um reenvio à boca, os-oris, à dimensão da oralidade). Num tempo em que o consumismo embota a capacidade de discernir entre verdadeiras e falsas necessidades, no qual o próprio jejum e as terapias dietéticas se tornam objecto de business, no qual as práticas orientais de ascese repropõem o jejum, e a quaresma é despachadamente lida como equivalente ao ramadão muçulmano, o cristão deve recordar o fundamento antropológico e a especificidade do jejum. Ele está em relação com a fé porque funda a pergunta: «cristão, de que vives?»

in Enzo Bianchi, Le parole della spiritualità, Rizzoli, 1999, pp. 157-160.

[Trad: Mário Rui de Oliveira]

2.3.07

O JEJUM

(Barnett Newman, «The Stations of the Cross», Washington D.C)

O jejum. Hoje, talvez como nunca, vale a pena falar dele. Jejuar é um grande sinal de maturidade espiritual. O jejum liberta, dá o sentido do essencial, aproxima dos pobres e emagrece o nosso consumismo. Ajuda a experimentar a fome e a indigência do amor. Educa para a solidariedade, transforma o coração, e faz entrar na grande corrente dos que sabem que «nem só de pão vive o homem mas da palavra que sai da boca de Deus» .

[Mário Rui de Oliveira]