O Bom Pastor:

Formação do Clero da Arquidiocese de Braga

30.6.07

Poema a um amigo na manhã do funeral

Havia um homem que corria pelo orvalho dentro.
O orvalho da muita manha.
Corria de noite, como no meio da alegria,
pelo orvalho parado da noite.
Luzia no orvalho. Levava uma flecha
pelo orvalho dentro, como se estivesse a ser caçado
loucamente
por um caçador de que nada se sabia.
E era pelo orvalho dentro.
Brilhava.

Não havia animal que no seu pelo brilhasse
assim na morte,
batendo nas ervas extasiadas por uma morte
tão bela.
Porque as ervas têm pálpebras abertas
sobre estas imagens tremendamente puras.
Pelo orvalho dentro.
De dia. De noite.
A sua cara batia nas candeias.
Batia nas coisas gerais da manhã.
Havia um homem que ia admiravelmente perseguido.
Tomava alegria no pensamento
do orvalho. Corria.

Ouvi dizer que os mortos respiram com luzes transformadas.
Que têm os olhos cegos como sangue.
Este corria, assombrado.
Os mortos devem ser puros.
Ouvi dizer que respiram.
Correm pelo orvalho dentro, e depois
estendem-se. Ajudam os vivos.
São doces equivalências, luzes, ideias puras.
Vejo que a morte é como romper uma palavra e passar

— a morte é passar, como rompendo uma palavra,
através da porta,
para uma nova palavra. E vejo
o mesmo ritmo geral. Como morte e ressurreição
através das portas de outros corpos.
Como uma qualidade ardente de uma coisa para
outra coisa, como os dedos passam fogo
À criação inteira, e o pensamento
pára e escurece

—como no meio do orvalho o amor é total.
Havia um homem que ficou deitado
com uma flecha na fantasia.
A sua água era antiga. Estava
tão morto que vivia unicamente.
Dentro dele batiam as portas, e ele corria
pelas portas dentro, de dia, de noite.
Passava para todos os corpos.
Como em alegria, batia nos olhos das ervas
Que fixam
estas coisas puras.
Renascia.

Herberto Helder

XIIIII Domingo do Tempo Comum


Ano C
Lc. 9, 51-62


Como seguir o Senhor Jesus, como caminhar «nas suas veredas» (cf. 1Ped 2,21)? Esta é a pergunta à qual o Evangelho de hoje responde.

O excerto abre com uma anotação importante: «Jesus endureceu o seu rosto para ir a Jerusalém». Inicia aqui a parte central do evangelho de Lucas, aquela na qual Jesus persegue o seu caminho para a cidade santa com extrema resolução, recolhendo todas as suas forças para fazer face às dificuldades que o esperam; ele sabe, com efeito, que «não é possível que um profeta morra fora de Jerusalém» (Lc 13,33). E não obstante o seu desejo de mostrar à cidade santa a via da paz, antes da paixão, não lhe ficará senão o pranto sobre ela, incapaz de reconhecer quem a visitava para lhe trazer a paz (cf. Lc 19, 41-44)…

Jesus envia antes de si alguns mensageiros encarregados de anunciar a sua passagem, mas estes, chegados a uma aldeia samaritana, são rejeitados por causa de uma antiga rivalidade religiosa entre judeus e samaritanos (cf. Jo 4,9). Nem sempre Jesus é acolhido com favor; aquilo que é certo, porém, é a sua vontade de não se vingar, de não reagir com violência ao insulto recebido. Mas esta não é a atitude espontânea dos seus discípulos que, representados por Tiago e João, os impetuosos «filhos do trovão» (Mc 3,17), queriam fazer descer um fogo do céu sobre quem os recusou. Eles podem apelar a um precedente ilustre: o profeta Elias tinha agido neste modo contra os seus adversários (cf. 2Rs 1,10.12). Não assim Jesus, que não quer opor hostilidade à hostilidade: ele vive radicalmente o amor pelo inimigo que ensina (cf. Lc 6,27-35), e assim mostra a quem o segue como não se deve nunca cair na terrível lógica da «reciprocidade»… O discípulo de Jesus Cristo é sempre e só chamado a fazer o bem, mesmo no confronto de quem o hostiliza.

Durante este caminho para Jerusalém dois «aspirantes discípulos» se propõem a Jesus, e um outro, chamado por ele, coloca-lhe condições preliminares. Atitudes inadequadas ao seguimento de Jesus, porque para assumir aquele caminho o que conta é escutar o chamamento de Jesus, acolhê-lo e obedecer-lhe, prontos a ir com ele mesmo onde não queremos, sem impedir as exigências que ele coloca: assim aconteceu, mesmo no meio de infidelidades e quedas, a quantos seguiram Jesus sobre a estrada da Galileia e da Judeia…

O primeiro individuo propõe-se dizendo, cheio de zelo: «Seguir-te-ei para onde quer que vás». Mas Jesus parece desencorajá-lo, insistindo sobre a sua condição itinerante, caracterizada pela precariedade própria de quem põe como metro último do seu agir apenas o Reino de Deus: «as raposas têm tocas e os pássaros do céu os seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça». Nenhuma presunção de si em quem quer seguir Jesus! Ao segundo é o próprio Jesus que dirige o seu chamamento, mas ouve responder: «Senhor, deixa-me ir primeiro sepultar meu pai». Jesus porém não admite dilações e replica com uma palavra paradoxal: «Deixa que os mortos sepultem os mortos; tu vai e anuncia o Reino de Deus».

Ou, diante do chamamento não há sequer mais tempo para cumprir os deveres de piedade familiar (cf. Ex 20,12; Tb 4,3): é preciso dar o primado a Jesus, aqui e agora. Há, por fim, um terceiro que diz a Jesus: «Te seguirei, mas antes deixa que eu me despeça dos de casa». Elias tinha concedido isto a Eliseu (cf. 1Rs 19, 19-21), mas Jesus afirma: «Ninguém que meteu a mão ao arado e depois se vira para trás é digno para o Reino de Deus». A vida cristã é questão de resolução e de perseverança: resolução como necessária mobilização das energias para escolher e perseguir o objectivo, perseverança como fidelidade quotidiana até à morte. Devemos estar todos os dias «esquecidos do que está para trás e virados para o que está à frente» (fil 3,13), Jesus Cristo, que sempre nos precede no caminho para o Reino…

Jesus expôs com franqueza as exigências da sua sequela, válida para todos os cristãos. Como responder ao chamamento que nasce do seu amor por nós? Com o amor: amando Jesus acima de tudo, mais do que todo outro nosso amor (cf. Mt 10,37), e através dele os outros, mesmo os nossos inimigos. Mas para fazer isto é preciso considerar o Senhor Jesus como o tesouro precioso da nossa vida (cf. Mt 13,44) e considerar que vale a pena viver como ele viveu. De resto, ele disse-o claramente: «Quem quiser salvar a própria vida, há-de perdê-la; mas quem a perder por mim, salvar-se-á» (Lc 9,24).

Enzo Bianchi
Prior de Bose
[trad: mro]

6.6.07

CORPO E SANGUE DE CRISTO




ANO C
LC 9, 11-17


Celebramos hoje a solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, memória dos gestos e das palavras de Jesus na última ceia, memória da eucaristia que reassume toda a sua existência, vida gasta e oferecida pelos irmãos até à morte. Este ano acedemos a tal mistério através da narração da multiplicação dos pães e dos peixes que prefigura o dom do pão da vida que Jesus fará com o seu gesto sobre o pão na vigília da sua paixão.

De regresso da missão «os apóstolos contaram a Jesus tudo o que fizeram» (Lc 9,10), e ele chama-os a retirar-se à parte, nos arredores de Betsaida, para ficarem a sós com ele e assim renovar a comunhão consigo: nesta intimidade com o seu Senhor e Mestre consiste a verdadeira possibilidade de retemperar-se oferecida por Jesus aos discípulos… Mas a multidão, vinda a saber desta fuga de improviso, mete-se no seu peugada: eles reclamam a presença de Jesus, a sua pessoa, porque com as suas palavras e as suas acções ele é o verdadeiro alimento capaz de saciar a fome de todo o homem. E eis que Jesus aceita fazer-se próximo de quantos têm necessidade: «acolhe a multidão, anuncia-lhes o Reino de Deus e cura quantos precisam de cura».

Rapidamente chega a noite e os Doze —conscientes da sua pobreza: «temos apenas cinco pães e dois peixes» — dirigem-se a Jesus pedindo-lhe que despeça as pessoas numerosas que o seguem a fim de que abandonando aquele lugar deserto possam dirigir-se às vilas mais próximas para encontrar alimento e alojamento. Mas o seu Mestre, que tinha recebido a multidão cumprindo tudo o que estava em seu poder para dar a eles a vida, não aceita o seu convite e solicita-lhes, com uma precisa ordem, como já tinha feito em outro tempo o profeta Eliseu (cf. 2Re 4,42-44): «Dai-lhes vós mesmos de comer». É uma ordem contra o bom senso, a razoabilidade, dado que os discípulos tinham manifestado a Jesus que a sua pobreza é um impedimento para realizar tudo quanto pede; mas Jesus exactamente naquela pobreza vislumbra o espaço necessário do dom, a condição na qual Deus pode mostrar a sua misericórdia e a sua bênção.

Jesus toma então com decisão a iniciativa e ordena que os cinquenta mil homens presentes se sentem por grupos de cinquenta (cf. Ex 18,24-26): «então ele tomou os cinco pães e os dois peixes e, levando os olhos ao céu, abençoou-o, partiu-o e deu-o aos discípulos para que os distribuíssem às multidões». É fundamental reconhecer a importância destes quatro verbos. São os mesmos utilizados para descrever a acção de Jesus na ultima ceia, quando ele tomou o pão, alimento necessário para a vida do homem; pronunciou sobre ele a bênção, deu graças a Deus, atestando de tal modo que o pão é fruto da terra e da bênção de Deus sobre o trabalho humano; partiu-o, com uma acção altamente expressiva, destinada a imprimir-se na mente dos discípulos (cf. Lc 24,35); deu-o aos seus comensais afirmando: «Tomai e comei, este é o meu corpo», a minha vida, isto é: «eu me dou a vós a fim de que vocês participem da minha própria vida» (cf. Lc 22,19). E é significativo que os dois discípulos de Emaús, mais tarde, reconheceram Jesus Ressuscitado exactamente quando ele cumprirá estas quatro acções (cf. Lc 24,30-31), sinal de uma vida gasta, entregue, repartida por amor aos homens.

«Todos comeram e ficaram saciados, e das partes que sobraram encheram doze cestos»: o nosso excerto conclui com esta anotação que testemunha a superabundância do dom de Jesus Cristo, oferecido a todos os homens. Jesus, portanto, é o profeta que faz sinais bem maiores que o Profeta Eliseu, e as doze cestas que sobraram —doze quantas as tribos de Israel— são o sinal daquela «medida boa, calcada, sacudida, transbordante» que será dada àqueles que sabem dar e partilhar (cf. Lc 6,38). Ele é verdadeiramente «o pão da vida» (Jo 6,35.48), é o Senhor que na eucaristia, sinal que sintetiza o sentido da sua inteira vida, nos comunica toda a sua existência: sim, o sacramento do Corpo e do Sangue de Jesus Cristo infunde em quem participa nele as energias para viver como ele sempre viveu. Isto deveremos recordar todas as vezes que celebramos a Eucaristia; e a partir desta verdade deveremos contemplar não só a narração da multiplicação dos pães, mas toda a vida de Jesus narrada pelos evangelhos, modelo e marca para a nossa existência quotidiana.

Enzo Bianchi
Prior de Bose
[trad: mro]

UM MODO FRÁGIL, INFINITO, DE FICAR



Durante três anos aqueles amigos percorreram as cidades do Oriente. Sempre juntos, pobres, generosos, caminhavam na força que têm as palavras e os gestos. À sua frente seguia alguém misterioso como o fogo, belo como o vento que bate nas árvores. Junto de Jesus, os dias eram um milagre. Mas Jesus sabe que tem de partir. Por isso encontrou um modo frágil, infinito, de ficar com os que ama: um pedaço de pão e um copo de vinho. «Este é o meu corpo. Este é o meu sangue. Eu estarei sempre convosco!»

Solenidade do Corpo e Sangue do Senhor

(Tintoretto, Ultima Ceia, Veneza)

Numa igreja de Veneza encontrei uma pintura de Tintoretto sobre a Última Ceia. Mulheres e homens trabalham incessantemente na confusão habitual das festas de hoje. Mas a pintura parece uma celebração cósmica. Figuras de anjos sobrevoam a sala, leves, ágeis como o fogo. Os discípulos, desconcertados, olham atentos, para o centro da mesa. É aí que está Jesus, soberano, sereno. Ele oferece de beber ao discípulo. O realismo é tão grande que ainda hoje pareço ouvir dizer: «Isto é o meu sangue». O sangue que lava os pecados do mundo.