O Bom Pastor:

Formação do Clero da Arquidiocese de Braga

3.3.07

Jejum: confissão de fé feita com o corpo

(Barnett Newman)


Assistimos hoje no ocidente a uma eliminação de facto da prática eclesial do jejum: assim uma práxis já vivida por Israel, reproposta por Jesus, acolhida pela grande tradição eclesial, está cada vez menos presente, não mais solicitada…E no entanto, para encontrar a verdade, aquela verdade humana que com a graça se torna a verdade cristã, é preciso pensar, rezar, partilhar os bens, conhecer o mal que nos habita, mas também jejuar, qual disciplina da oralidade. O comer pertence ao registo do desejo, vai alem da simples função nutritiva para revestir-se de conotações afectivas e simbólicas. O homem, enquanto homem, não se nutre apenas de alimento, mas de palavras e gestos trocados, de relações, de amor, isto é de tudo o que dá sentido à vida nutrida e sustentada pelos alimentos. O comer, de resto, acontece em conjunto, numa dimensão de convivialidade, de intercambio. A oralidade está ligada às dimensões do «comer», do «falar», do «beijar», portanto às dimensões biológica, comunicativa e afectiva da existência humana e por isso reenvia à totalidade da pessoa que «vive» destas dimensões. O jejum exerce assim a fundamental função de nos fazer saber qual a nossa fome, de que vivemos, de que nos nutrimos e de ordenar os nosso apetites em torno ao que é verdadeiramente central.

E todavia seria profundamente errado pensar que o jejum —na variedade das formas e graus que a tradição cristã desenvolveu: jejum total, abstinência das carnes, assumpção de alimentos vegetais ou somente pão e água—, seja substituível por qualquer outra mortificação ou privação. O comer reenvia ao primeiro modo de relação da criança com o mundo externo: a criança não se alimenta apenas do leite da mãe, mas inicialmente conhece a não distinção entre mãe e alimento; portanto nutre-se das presenças que o rodeiam: ele «come», recebe vozes, odores, formas, rostos, e assim, a pouco e pouco, se edifica a sua personalidade relacional e afectiva. Isto significa que a valência simbólica do jejum é absolutamente peculiar e que isso não pode encontrar «equivalentes» em outras formas de ascese que, revestindo-se de outras valências simbólicas, não podem desempenhar a sua função. Os exercícios ascéticos não são permutáveis! Com o jejum aprendemos a conhecer e a moderar os nossos muitos apetites através da moderação do aspecto fundamental e vital: a fome, e aprendemos a disciplinar as nossas relações com os outros, com a realidade externa e com Deus, relações sempre tentadas de voracidade. O jejum é ascese da necessidade e educação do desejo.

Só um cristianismo insípido e estulto que se compreende sempre mais como moral social pode liquidar o jejum como substancialmente irrelevante e pensar que qualquer privação de coisas supérfluas (portanto não vitais como o comer) pode substitui-lo. Esta é uma tendência docetista que torna «aparente» o carácter criatural da humanidade e que esquece seja a espessura do corpo seja o seu ser templo do Espírito Santo. Na verdade o jejum é a forma com a qual o crente confessa a fé no Senhor com o seu próprio corpo, é antídoto à redução intectualista da vida espiritual ou à sua confusão com o psicológico. […].

Sim, nós somos o que comemos, e o crente não vive apenas de pão, mas sobretudo da Palavra e do Pão eucarístico, da vida divina: uma práxis pessoal e eclesial do jejum faz parte da sequela de Jesus que jejuou (Mt 4,2), é obediência ao Senhor que pediu aos seus disicpulos a oração e o jejum (Mt 6,16-18; Mc 9,29; Act 13, 2-3; 14,23), é confissão de fé feita com o corpo, é pedagogia que leva a totalidade da pessoa à adoração de Deus (e note-se que a etimologia de ‘adorar’ contem um reenvio à boca, os-oris, à dimensão da oralidade). Num tempo em que o consumismo embota a capacidade de discernir entre verdadeiras e falsas necessidades, no qual o próprio jejum e as terapias dietéticas se tornam objecto de business, no qual as práticas orientais de ascese repropõem o jejum, e a quaresma é despachadamente lida como equivalente ao ramadão muçulmano, o cristão deve recordar o fundamento antropológico e a especificidade do jejum. Ele está em relação com a fé porque funda a pergunta: «cristão, de que vives?»

in Enzo Bianchi, Le parole della spiritualità, Rizzoli, 1999, pp. 157-160.

[Trad: Mário Rui de Oliveira]