O Bom Pastor:

Formação do Clero da Arquidiocese de Braga

6.2.07

O Grande Silêncio


O filme documentário de Philippe Gröning mergulha-nos na vida dos monges da Grande Cartuxa. Três horas, quase sem uma palavra, sem música adicional. Uma excepcional experiência espiritual e cinematográfica. Sai em Portugal na próxima Quinta-feira.

A este propósito, socorremo-nos de um texto de Enzo Bianchi que nos pode introduzir na aventura do silêncio.

A tradição espiritual e ascética sempre reconheceu o valor essencial do silêncio para uma autêntica vida de oração. “ A oração tem o silêncio por pai e a solidão por mãe”, disse Jérôme Savonarole. Com efeito, só o silêncio torna possível a escuta, isto é, o acolhimento em si não só da Palavra mas também da presença de Cristo que fala. O silêncio abre deste modo o cristão à experiência da inhabitação de Deus: pois o Deus que procuramos, seguindo na fé Cristo ressuscitado, é o Deus que não é exterior a nós, mas que habita em nós. Jesus diz no quarto Evangelho: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará e nós viremos a ele e faremos nele a nossa morada” (Jo 14, 23). O silêncio é a linguagem do amor, da profundidade, da presença do outro. De resto, na experiência amorosa, o silêncio é muitas vezes uma linguagem muito mais eloquente, intensa e comunicativa que uma palavra. Infelizmente, nos nossos dias, o silêncio é raro; ele é o que mais falta ao homem moderno, ensurdecido pelos barulhos, bombardeado por mensagens sonoras e visuais, destituído da sua interioridade, como se lha tivessem tirado. E é quando “diminui o prestígio da linguagem que aumenta o do silêncio” (Susan Sontag). A vida espiritual também se ressente desta carência: as liturgias são muitas vezes palavrosas, recheadas de comentários que, querendo tudo explicar, tudo dizer, esquecem que em Deus, há algo de indizível, um silêncio, um mistério que a liturgia deve transparecer. De resto, a procura crescente de vida espiritual autêntica é muitas vezes ignorada pelas Igrejas locais, mais empenhadas em múltiplas actividades de assistência, sociais, caritativas, recreativas, ou, no melhor dos casos, catequéticas. Não será então de espantar que sejam muitos a procurar caminhos de espiritualidade fora do cristianismo.
Temos de reconhecer: temos necessidade do silêncio! Temos necessidade num ponto de vista estritamente antropológico, porque o homem, que é um ser de relação, comunica de um modo equilibrado e significativo somente graças à relação harmoniosa entre palavra e silêncio. Mas temos também necessidade de um ponto de vista espiritual. Para o cristianismo, o silêncio não é só uma dimensão antropológica mas teológica: quando estava só, no monte Horeb, o profeta Elias ouviu em primeiro lugar um furacão impetuoso, depois um terramoto, de seguida um fogo, e por fim, “o murmúrio de uma brisa suave” (1Re 19, 12): logo que Elias ouviu este murmúrio, cobriu o rosto com o seu manto e colocou-se diante de Deus. Deus faz-se presente a Elias no silêncio, um silêncio eloquente. A revelação do Deus bíblico não se faz somente através da palavra, mas também acontece no silêncio. Inácio de Antioquia dirá que Cristo é “a Palavra saída do silêncio”. O Deus que se revela no silêncio e na palavra exige do homem a escuta, e para escutar, o silêncio é essencial. Não se trata simplesmente de se abster de falar, mas de observar o silêncio interior, esta dimensão que nos restitui a nós próprios, e nos situa no plano do ser, face ao essencial. “Há no silêncio um poder maravilhoso de clarificação, de purificação, de concentração sobre o essencial” (Dietrich Bonhoeffer). É do silêncio que pode nascer uma palavra subtil, penetrante, comunicativa, sensata, luminosa, terapêutica, capaz de consolar.
O silêncio é o guarda da interioridade. Mesmo que se trate de um silêncio definido negativamente, como a sobriedade e a disciplina da linguagem, até à abstenção de toda a palavra, ele evolui deste primeiro momento para uma dimensão interior: isto é, cala os pensamentos, as imagens, as rebeliões, as maledicências que nascem no coração. Com efeito, “de dentro, do coração do homem, é que nascem os desejos perversos” (Mc 7, 21). É difícil o silêncio interior, aquele que se joga no coração, lugar de luta espiritual. Mas este silêncio interior, precisamente, gera a caridade, a atenção ao outro, o acolhimento ao outro, a empatia pelo outro. Sim, o silêncio cava na nossa profundidade um espaço para aí fazer habitar o Outro, para aí fazer permanecer a sua Palavra, para enraizar em nós o amor pelo Senhor; ao mesmo tempo, e em ligação com isto, ele dispõe-nos à escuta inteligente, à palavra medida, ao discernimento do coração do outro, ao que arde na sua intimidade e está escondido no silêncio donde nascem as suas palavras. Então o silêncio, este silêncio, suscita em nós a caridade, a amor pelo nosso irmão. Deste modo, o duplo mandamento do amor a Deus e ao próximo é observado por aquele que sabe guardar silêncio. Basílio chega a dizer: “O silencioso torna-se fonte de graça para quem escuta”. Chegados a este ponto, podemos repetir, sem medo de cair na retórica, a afirmação de Edmond Rostand: “O silêncio é o canto mais perfeito, a oração mais elevada”. Quando conduz à escuta de Deus e ao amor ao próximo, à caridade autêntica, isto é, à vida em Cristo (e não ao vazio interior, vago e estéril), então o silêncio é uma oração autenticamente cristã e agradável a Deus. É este silêncio que, depois de ter percorrido uma longa história espiritual, chega até nós; é o silêncio que procuraram e praticaram os hesicastas para obter a unificação do coração; é o silêncio da tradição monástica, que visa ao acolhimento em si da Palavra de Deus; é o silêncio da oração de adoração da presença de Deus; é o silêncio querido pelos místicos de todas as tradições religiosas; e, antes de tudo, é o silêncio onde está esculpida a linguagem poética; é o silêncio que constitui a natureza da música; é o silêncio essencial a todo o acto de comunicação. O Silêncio, acontecimento de profundidade e de unificação, torna o corpo eloquente, levando-nos a habitar o nosso corpo, a habitar a nossa vida interior, guiando-nos a este habitare secum tão precioso à tradição monástica. O corpo habitado pelo silêncio torna-se revelação da pessoa.
O cristianismo contempla Jesus Cristo como a Palavra feita carne, mas também como o Silêncio de Deus: os evangelhos mostram um Jesus que, à medida que avança na paixão, cala-se cada vez mais; entra no silêncio como um cordeiro afónico, como aquele que, conhecendo a verdade, sabendo o indizível fundo da realidade, não pode nem quer trair o inefável pela palavra, mas guarda-o no silêncio. Jesus, que “não abre a boca”, revela que o silêncio é o que é verdadeiramente forte, faz do seu silêncio um acto, uma acção. Precisamente por isso, poderá fazer da sua morte um acto, o gesto de um vivente. A fim de que seja verdadeiramente claro que para além do silêncio e da palavra, o que é verdadeiramente portador de salvação, é o amor que vivifica um e outra. E o que é Cristo crucificado senão o ícone do silêncio, e mesmo do silêncio de Deus? Sobre a cruz, dizem os evangelhos, do meio-dia às três horas da tarde, a hora da morte de Cristo, reinou a obscuridade e o silêncio. Há um silêncio total de palavras sobre Deus e de imagens de Deus, de conceptualizações de Deus e de ideias de Deus: todo o discurso sobre Deus, toda a representação de Deus devem sempre medir-se a este silêncio, porque conhecem a tentação de sempre de reduzir Deus a um ídolo, a um produto manufacturado, a um objecto manipulável. É justamente este silêncio no momento da cruz que consegue dizer o indizível: a imagem de Deus invisível deve ser procurada neste homem pendurado na cruz. O silêncio da cruz é o ensinamento último onde jamais cessaremos de beber toda a palavra teológica.


ENZO BIANCHI, Les mots de la vie intérieur, Cerf, Paris 2001.

Tradução de Luís Marinho

4 Comments:

  • Como precisamos de silêncio, num mundo rodeado de dispersão!!

    Conseguindo alguns espaços de silêncio exterior, podemos ir cultivando o silêncio do coração. Assim, nos tornaremos homens e mulheres mais centrados, mais reverentes diante da realidade.

    O primeiro passo é certamente o silêncio de palavras, aprendendo a falar da maneira, no tempo, com a intenção apropriados. Como isso é importante na vida familiar!

    Muito obrigado pelo texto. É maravilhoso. Poderia dar mais detalhes sobre o filme?

    By Blogger Danilo, at 5:23 da tarde  

  • Possibilidade de link:
    http://www.youtube.com/watch?v=I4Rdawxt3tI

    By Anonymous Anónimo, at 12:35 da tarde  

  • Recomenda-se "The Silent Life", de Thomas Merton.

    By Anonymous Anónimo, at 12:39 da tarde  

  • Para quem quiser ver o outro lado da lua: "Silentium", do realizador Wolfgang Munberger.

    By Anonymous Anónimo, at 1:09 da tarde  

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