Aporias de um debate (5)
(Fotografia de Anne Geddes)
A dança das palavras está aí, nas manifestações públicas, nas opiniões exaradas na imprensa, nos slogans dos cartazes (outdoors), nos debates televisivos, nos comentários da rádio, nas conversas de rua, nas cavaqueiras em família e entre amigos: despenalização, descriminalização, legalização, humilhação torpe da mulher, hipocrisia dos adeptos de uma e outra “bancada”, indiferença gélida face ao futuro de crianças “para quem teria sido (ou será) melhor não nascer”…
E como tópico recorrente aí aparece a Igreja sob a acusação coral de se “meter onde não é chamada”, de ter “um coração de pedra” face aos dramas da mulher, de assumir uma posição hipócrita como a dos fariseus no tempo do seu fundador, de Jesus de Nazaré, de radicalismo insanável nos seus pronunciamentos, de intolerância inaceitável num tempo de democracia.
Nalguns casos, onde os católicos têm o tempo de antena indispensável para esclarecerem as posições reais da Doutrina da Igreja, ouvem-se exclamações de surpresa por parte do interlocutor laico e laicista. E para superar o embaraço provocado pela surpresa de verificar que, afinal, a posição da Igreja não é tão intolerante, tão obscurantista, tão hipócrita, tão cientificamente ignorante… acontece, às vezes, que o interlocutor assume as vestes de juiz severo e sentencia: “Mas isso é o que alguns padres mais progressistas dizem; a Igreja não prega isso!” Surpresa chama surpresa: pacientemente temos, então, de apelar à paciência do “adversário” para ler os documentos, numerosos e profundos, do magistério da Igreja, de forma a não construir confrontos inúteis, quais D. Quixotes a combater moinhos de vento que não existem. Este é um dos mais graves e paralisantes handicaps para um diálogo esclarecedor entre crentes e não crentes, entre católicos e laicos, entre Igreja e Sociedade. Alguns bons pensadores do mundo laico elaboram a sua argumentação baseados num presumido pensamento da Igreja, mas que, sem culpa (espero!), desconhecem totalmente. E, nestes casos, o mea culpa pertence-nos, a nós cristãos, leigos, sacerdotes, bispos. Saberemos sempre apresentar de forma séria, persuasiva, estudada e em respeito pela diferença a riqueza que a Igreja nos oferece, nas suas palavras, nos seus gestos e nas vivências da sua longa e atribulada história? Creio que não.
Nestes apontamentos breves é impossível equacionar, e muito menos explanar, de forma adequada, temas tão amplos. Vamos fazendo-o por etapas, na esperança de quem ler este apontamento tenha lido os anteriores e não perca o interesse de ler os seguintes; aliás, teria dificuldade em descobrir o horizonte destas reflexões, que são, sublinho, interligadas e feitas por etapas. Hoje, deixaria apenas estas notas:
A Igreja criminaliza, penaliza, culpabiliza a mulher que recorre ao aborto? Absolutamente não. Não criminaliza, embora considere o aborto um crime contra a vida e contra o direito à mesma dum ser frágil e indefeso; alguma vez a Igreja levou uma mulher nestas circunstâncias ao tribunal? Não é o poder judicial do Estado que as julga e condena ou absolve? A Igreja, denunciando a gravidade do pecado contra o 5.º Mandamento -- Não matarás (Êx 20, 12; Deut 5, 17) --, absolve, no arrependimento, a penitente. E faz mais: acolhendo com compreensão de mãe, como discípula d’Aquele que disse à adúltera “Mulher, ninguém te condenou? Também eu não te condeno; vai e não voltes a pecar” (Jo 8, 11), a Igreja esforça-se por praticar uma pedagogia pastoral que liberte a mulher do labirinto da culpa, e que a reconcilie consigo mesma e com a vida. Em muitos casos, é apenas no segredo de uma confissão que o drama é comunicado e partilhado, fazendo assim o papel, gratuitamente, duma consulta psiquiátrica ou psicológica! E, em não raros casos, é o sacerdote que, com a discrição que a confidência impõe, encaminha a pessoa para o consultório de um especialista das profundezas da alma, da psiché! Se isto é intolerância, indiferença, hipocrisia, deixo o juízo ao amigo e condescendente leitor. Diria apenas que não somos contra, mas a favor. Mas sabendo que a nossa linguagem não deve ser “sim e não”, mas “sim, sim; não, não” (ver Mt 5, 37) porque o “Filho de Deus […] não foi um sim e um não mas unicamente um sim”, n’Ele “as promessas de Deus tornaram-se um amen” (2Cor 1, 17-20), ser sim é, muitas vezes, dizer não, com a coragem do profeta solitário, porque incompreendido e recusado, mas solidário com o verdadeiro destino do homem. Não se pode dizer sim a uma “cultura da morte” se a opção for dizer sim à vida. Neste caso, o sim e o não são totalmente incompatíveis. Na dor do coração que os dilemas sempre acarretam, há que saber dizer não para que o sim seja sincero, fecundo e ao serviço do verdadeiro bem do homem.
Luís Esteves
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