O Bom Pastor:

Formação do Clero da Arquidiocese de Braga

7.1.07

Aporias de um debate (3)

(foto de Anne Geddes)

Que pode significar a afirmação de que “o aborto é uma questão de consciência”? Em todas as intervenções quer dos defensores do “não” quer dos do “sim” não vi nem ouvi ninguém a pôr em causa este princípio. Contudo, o tipo de argumentação não é, de forma alguma, coincidente e, em muitos casos, é antitético, fazendo concluir do princípio aceite por todos posições totalmente diferentes senão opostas. Os Bispos portugueses na Nota pastoral (Cinco) Razões para escolher a vida dizem propor-se «esclarecer as consciências», sublinham que o debate que antecede o referendo não pode ser «uma qualquer campanha política», mas sim «um período de esclarecimento das consciências», e acentuam que «a escolha no dia do referendo é uma opção de consciência».
Isto não significa, como alguns pretendem fazer crer, que, sendo o aborto uma questão de consciência, deve ficar limitado ao foro íntimo das convicções e opções de cada pessoa, que não pode lutar em praça pública por uma opinião sobre a legislação atinente. Ou seja, o cidadão teria o direito de pensar o que quiser mas não poderia manifestá-lo para não agredir a consciência do outro que pensa de modo diferente nem condicionar com a sua “propaganda” a opção livre de cada um. É certo que a “consciência” é a fonte próxima da moralidade, e, por isso, critério irrecusável na hora da decisão: pensar e agir segundo a sua consciência é um direito e um dever da pessoa humana. Mas isto não impede, antes exige, a assumpção da responsabilidade de justificar, de “dar as razões” das suas convicções. Aliás, cair-se-ia na pura arbitrariedade que é o contrário do livre arbítrio e duma autêntica liberdade.
O homem tem o direito e o dever de formar a sua consciência segundo princípios éticos e morais justos e valores essenciais da existência humana. Só assim confere a si próprio a possibilidade dum exercício responsável do intocável santuário da sua íntima consciência. Formar não é impor ao outro as suas convicções; é, antes, procurar juntos a Verdade, em diálogo franco, sério, respeitador das diferenças, em debate apaixonado, não agressivo ou insultuoso, conscientes de que a Verdade é maior dos que as certezas de cada um, transcende-nos, dela não somos donos nem administradores mas eternos peregrinos, que vão descobrindo verdades parciais que apontam na direcção da Verdade, que é bondade, beleza e sentido do existir, do decidir e do agir.
Uma liberdade sem a responsabilidade, ou seja, a capacidade de responder por si ao outro e, na fraternidade, responder pelo outro, é vazia de conteúdo e pode tornar-se num slogan ao serviço do marketing político, ideológico mas não, decididamente, ao serviço da humanidade dos homens. A consciência é pessoal, inviolável, mas não é privada nem privatizável; ela é a abertura do homem à alteridade: à Verdade que ultrapassa a todos e que a todos os que a buscam com paixão se desvela, ao outro diferente de mim mas com igual dignidade. É esta verdade que nos faz livres e que alimenta um digno exercício da consciência como fonte de moralidade. Mas não se esqueça que a consciência é inviolável mesmo que esteja errada. O empenho em esclarecer as consciências é um serviço à verdade do homem e não a oportunidade de o manipular, de o constranger, de o modelar à minha imagem, de operar “uma lavagem ao cérebro”. Sem espírito de diálogo, de abertura às razões do outro, de paciência face à indiferença ou arrogância do interlocutor, a verdade oculta-se e revelam-se as tendências do “homem velho”, manipulador, tirano, egolátrico, adorador de sistemas totalitários de pensamento.
Uma questão de consciência que deve conduzir sempre à consciência da questão. Uma consciência que deixou de procurar a verdade, a bondade e a beleza já morreu. Uma consciência livre, que garanta substância à liberdade de consciência, não pode deixar de olhar para além de si, de contemplar o outro e a verdade do outro e, em última análise, de se deixar interpelar pelo Outro, aceite na fé ou oculto, mas não inactivo, em todos os que buscam a verdade de “coração sincero”. É neste horizonte que se pode afirmar que “o aborto é uma questão de consciência” para os conscientes da sua responsabilidade de pensar e viver. Para os inconscientes que sentido teria falar de consciência?

Luís Esteves