I Domingo da Quaresma
Inicia o tempo da Quaresma, um tempo de graça que deve ser vivido por todos os cristãos como ocasião de conversão, de regresso a Deus: somos chamados a deslocar o nosso olhar dos ídolos alienantes que nos seduzem, para os dirigir para o único Senhor das nossas vidas. É um tempo de luta espiritual, de simplificações, isto é, de autenticidade para connosco próprios e para com Deus: tudo isto «tendo fixo o olhar em Jesus» (Heb 12,2) e colocando a nossa luta na sua; de facto, «por ter sido tentado na primeira pessoa ele é capaz de vir em auxílio daqueles que sofreram a provação» (Heb 2,18).
O Evangelho deste primeiro domingo da Quaresma narra-nos precisamente a luta de Jesus contra as tentações. A experiência por ele vivida no baptismo, a de ouvir da boca do pai as palavras «Filho amado» (Lc 3,22), não o inibiu de um percurso sem provações: logo depois de ter recebido a imersão no rio Jordão, «Jesus foi conduzido pelo espírito ao deserto» -lugar de solidão e de redução ao essencial - «onde por quarenta dias foi tentado pelo diabo». Aqui se confronta com a possibilidade do mal e «é tentado em todas as coisas como nós, sem contudo cometer pecado» (Heb 4,15). Sim, realmente Jesus foi tentado, foi posto de fronte á possibilidade de viver por si mesmo, saindo da comunhão com Deus e com os irmãos: devemos levar a sério as tentações vividas por Jesus, porque só assim poderemos aprender dele a arte da luta.
Lucas exemplifica em número de três as tentações sofridas por Jesus: mudar as pedras e pão, possuir os reinos da terra, lançar-se do alto do templo para ser salvo pelos anjos. Diante da fome, Jesus não absolutiza as suas necessidades e não subverte a criação para satisfazê-las; não cede à tentação do milagre que suprime o cansaço do trabalho para tirar da terra o alimento. Jesus partilhará certamente o pão com milhares de pessoas (cf. Lc 9, 12-17), mas a partir do pouco colocado á disposição por alguém, poucos pães e poucos peixes fruto da bênção de Deus sobre o trabalho do homem. É esta a via com a qual ele mostra que «nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus» (Dt 8,3).
Diante da vertigem das alturas a que o diabo o conduz, à visão «num instante de todos os reinos da terra» e à inebriante promessa de poder e glória, Jesus não se subtrai aos limites do espaço e do tempo constitutivos da humanidade, mas vive uma radical obediência a Deus. Não se deixa arrastar pelo delírio da omnipotência, do fascínio perverso do «tudo e já», mas guarda o sentido do limite, da unicidade de Deus e da distancia em relação a ele. Eis porque responde a Satanás: «Só diante do Senhor teu Deus te prostrarás, só a ele adorarás» (Dt 6,13).
Em Jerusalém, Jesus não cede à tentação do prodigioso e não se subtrai aos limites da própria corporeidade. Ele não impõe a própria messianidade com a evidência de um gesto extraordinário que obrigue a gente a aderir a ele, não dobra as Escrituras à afirmação de si. E assim, ao demónio que lhe cita uma frase retirada dos salmos, mostra concretamente o que significa «não tentarás o Senhor teu Deus» (cf. Dt 6,16).
Enfim, tentado pelos elogios de Satanás, Jesus reage através de uma atitude de radical obediência a Deus e ao próprio ser criatura, permanecendo – por assim dizer - com os pés por terra: ele protege com sobriedade e segurança a própria humanidade, salvaguardando assim também a imagem de Deus revelada pelas Escrituras, sem a substituir por uma imagem «manufacturada». E a arma com a qual Jesus chega à vitória é a submissão à Palavra de Deus: em resposta às tentações, sobre a sua boca ressoa apenas a Palavra de Deus contida nas Escrituras, uma Palavra que ele assume e vive no seu significado profundo, não na sua simples letra, como faz Satanás…
Sim, o combate espiritual consiste no predispor toda a fibra do nosso ser para a acção operada por Deus em nós por meio de Jesus Cristo, o verdadeiro protagonista da nossa luta. É quanto nos pede a Igreja, através das palavras da oração que nos oferece a liturgia deste domingo: «Concedei-nos, Deus omnipotente, que pela observância quaresmal, alcancemos maior compreensão do mistério de Cristo e a nossa vida seja um seu digno testemunho».
Enzo Bianchi
Prior de Bose
(trad: Mário Rui de Oliveira)
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