Um novo dom para a Igreja de Braga: António Couto, Bispo Auxiliar
1. «O Senhor-Deus modelou o homem do pó do solo, e soprou nas suas narinas um alento de vida, e o homem tornou-se um ser vivo» (Génesis 2,7).
2. Descrição de sonho. Um Deus que modela com as suas mãos o homem da nossa terra pura e fecunda. O húmus, a humildade, o homem. Tecido de húmus, de humildade, modelado e embalado pelas mãos maternais de Deus. Acariciado, mimado, animado, pelo sopro puro de Deus: beijo de Deus no rosto do homem. Eis o homem.
3. Alguns Livros à frente, no final do Deuteronómio, continuamos a ler, para feliz espanto nosso, que «Moisés, servo de Deus, morreu ali, na terra de Moab, à boca de Deus» (Deuteronómio 34,5), depois de, no Livro dos Números (12,8), Deus ter já aparecido a declarar: «Falo com ele (Moisés) boca a boca».
4. Nenhuma distância. Tamanha intimidade. Tanto carinho. Quando nasce. Durante a vida toda. Também na morte. Note-se bem que o homem não é só pó. É pó modelado e soprado,/ beijado,/ sustentado pelo alento puro e amoroso de Deus. O homem é, portanto, pó e amor. E o amor não volta ao pó, pois «o amor é forte,/ é como a morte» (Cântico dos Cânticos 8,6), «liberta da morte» (Tobias 12,9; Provérbios 10,2; 11,4; Dn 4,24). Quem acolhe o amor de Deus não fica, pois, perdido nas páginas do pó (Jeremias 17,13), mas é recolhido pelas mãos carinhosas de Deus nas páginas do livro da vida (Salmo 87,5; Isaías 4,3; Daniel 12,1; Malaquias 3,16; Lucas 10,20; Apocalipse 20,12).
5. Contrasta absolutamente com o que vemos descrito nos mitos mesopotâmicos antigos, nomeadamente no Enuma Elish e no poema de Atra-hasis. Também aí os deuses modelam o homem a partir da terra. Mas não se trata de terra pura e fecunda, carregada de humildade. É, antes, terra amassada com o sangue e restos dos deuses maus, assassinados pelos deuses ditos bons. Como se pudessem ser bons os deuses violentos e assassinos! De qualquer modo, nesses textos mitológicos mesopotâmicos, o homem nasce tristemente de uma acção de limpeza que os deuses levaram a efeito no seu seio. É fruto, não de mãos de amor, mas de mãos assassinas e ensanguentadas, que, depois de varrerem o lixo do seu seio, o despejaram no homem, como se de um saco de lixo ou de um contentor se tratasse! Nenhum amor nestes deuses violentos, nenhum amor neste homem, que não é mais do que o caixote de lixo da divindade. Fruto da violência, mal feito, feito de mal, este homem é mau e mesquinho e violento por natureza, marionete nas mãos dos deuses violentos, vítima revoltada e violenta de deuses tirânicos e prepotentes. Sem liberdade e sem graça, sem humanidade, sem humildade, sem amor. Uma espécie de robot violento e metalizado, irresponsável, impassível, insensível, inculpável. In-culpável: o mal que o afecta é um mal natural; não é sequer mal moral, pois este supõe e requer a liberdade.
6. Ler o homem e ler o mundo, ler este homem e ler este mundo: gesto que não pode ser feito sem respeitar a intencionalidade do criador, que me deu a mim mesmo por amor, para que eu me receba por amor, e me deu o mundo por amor, para que eu o receba por amor. Ao contrário do que possamos pensar, receber não é um gesto fácil; é um gesto difícil que requer inteligência e coragem. Implica que eu compreenda que não tenho em mim o meu fundamento, que não tenho nenhum direito sobre mim nem sobre o mundo, que eu não sou meu e que o mundo não é meu, que eu não sou dono de mim nem dono do mundo, que não posso dar-lhes o sentido que eu quiser.
7. O sentido é o amor, que não volta ao pó. O amor liberta da morte, meu irmão de Novembro.
António Couto
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