O dia de cinzas...
(Mark Rothko)
Os ícones do mais fino oiro e do celestial lápis-lazúli tinham sido retirados na noite anterior cedendo lugar ao deserto. Os panejamentos bordeaux, os lisos seixos e a aridez de um ramo ressequido eram eloquentes na sobriedade e presidiam ao espaço litúrgico. Soaram as 12.15h nos sinos de Bose e os monges, eles e elas, vindos da direita e da esquerda, ajoelharam-se num ritual de silêncio. Impera sempre a cerimónia naqueles gestos —gestos antigos e vindos de muito longe — que é tudo menos ritualismo herético e vazio, mas antes uma delicadeza no trato, na colocação da voz e do corpo (óh elegante voo de águia no estendimento!), nos mínimos passos que vão de uma vela a outra... O Abade entra, um entre tantos, único e soberano. Começa o kyrie eleison, o cântico do salmo 50 («cria em mim ó Deus um coração puro...»), a liturgia da Palavra, a flamejante e balsâmica homilia sobre o jejum, a oração, a esmola, e depois, logo depois, o discernimento dos próprios pecados... Agora o presidente convida todos a receber em suas mãos as cinzas, a olhar para elas, a tocar nelas, a sujar as mãos com elas, a sentir-se incomodado com elas, com as cinzas.... com as mãos... as mãos e as cinzas. E em seguida ouvíamos da sua boca: «Diante do Senhor os teus pecados pesam tanto como esta cinza. Vai em paz»
Mário Rui de Oliveira
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