O Bom Pastor:

Formação do Clero da Arquidiocese de Braga

9.9.06

Simpósio do Clero em Fátima: memória do percurso


7 de Setembro: 3º dia de Simpósio

No terceiro dia pensou-se a comunidade como lugar de unidade, de diversidade e de pluralidade a partir da diferença no próprio Deus. Enzo Bianchi adoptou o conceito de “triunidade” para significar esta realidade de um Deus que não é estranho à nossa visão do mundo, do homem e da história. Pensar este mistério triuno possibilita conhecer não só Deus quanto o humano. O conceito de mistério foi assumido na sua raiz bíblica de desvelamento, de algo que não é enigma mas abertura de sentido e de revelação iniciada sem esgotar a realidade cujo sentido entreabre.
Foi salientada a característica específica da revelação divina na fé cristã cuja profissão assenta num Deus que fala e que ama, o que constitui uma marca radicalmente diferenciadora face às restantes tradições religiosas. A razão anselmiana foi apresentada e pensada além da motivação soteriológica de um Deus que encarna para salvar e além da graça divinizante oriental de um Deus que encarna para fazer o homem divino participante da pluralidade triunitária. Assim, a encarnação dá início a uma história, introduz num processo de diferenciação. O Deus em Si mesmo diferente torna-nos diferentes. Neste contexto foi reflectido o elemento do “terceiro” como aquele que perfaz a unidade e a diferença para além da reciprocidade fechada entre um “eu” e um “tu” tão a gosto da mentalidade romântica contemporânea. Este elemento é importante porque comporta consequências a nível social e político. A deriva orientalizante na busca contemporânea das espiritualidades orientais resulta precisamente da ausência deste terceiro como o elemento diferenciador. Aqui assume lugar primacial o lugar do Espírito Santo na teologia cristã e na espiritualidade eclesial como espaços de vivência do Diferente, por isso mesmo espaços de abertura ao Diferente e à diferença. Ao nível eclesial, o Diferente traduz-se na recepção do outro. A problemática da alteridade foi bastante desenvolvida ao longo destes dias, e ressoa como o pano de fundo teológico e espiritual que aparece como desejo de implementação. Este simpósio alertou para o lugar eclesial do outro enquanto dom e possibilidade de participação no mistério triunitário do nosso Deus plural. Pretendeu-se deste modo superar o monolitismo eclesiológico, a uniformidade ou algum tom ditatorial. A Diferença triunitária instaura o diferente humano como o lugar da comunhão, o mesmo é dizer, o humano como o lugar da comunhão. Neste sentido, a comunhão eclesial ultrapassa atitudes defensivas de receio ou condenações fechadas ao diferente. Estes foram sentidos como os riscos permanentes da comunhão eclesial e das nossas relações, pois muitas vezes receamos o diferente, dele nos afastamos ou recusamos, pois não é percebida a natureza matricial da comunidade eclesial enquanto é constituída na pluralidade mesma. A diversidade na Igreja e entre as comunidades eclesiais é constitutiva da mesma.
Foi aqui colocada a questão nodal a partir da tradição joanina: se os cristãos se distinguem por serem aqueles que crêem no amor, o que dizer de nós? A pergunta foi atirada directamente à assembleia. Foi distinguido o amor abstracto do exercício concreto dos amantes. A temática do amor acabou por servir para redizer a comunhão eclesial. Recorreu-se igualmente aos dados da antropologia (como deve ser com qualquer discurso minimamente consistente) para mostrar o húmus humano da recepção da identidade na alteridade: o rosto e o nome são conhecidos pelo outro e por esse outro a eles acedemos, e por aí à identidade de nós mesmos. A analogia do primeiro dia foi aqui recuperada na medida em que somos no rosto e no nome modelados à imagem da triunidade de Deus.
Estando esta alteridade na base da matriz cristã, foi considerada como fundamental para ajudar a transmitir a fé cristã às novas gerações nesta época de ruptura da memória. Elencaram-se alguns sinais dessa crise: redução das ordenações e das vocações religiosas, redução da Igreja a um movimento, disparidade entre o evangelho e a vida, esquecimento que a fé cristã proporciona uma sabedoria concreta de vida. É este amor sapiencial que permitirá fazer do cristianismo uma proposta de vida autêntica. A exequibilidade do evangelho e do projecto do reino de Jesus será a proposta que dará consistência cultural e crédito ao anúncio da Igreja perante o grande risco do nosso tempo – o da indiferença (esse inquilino estranho na Europa em que Deus parece que deixou de ser necessário). O amor obriga hoje a colocá-Lo não no espaço dos ritos nem dos dogmas mas da pura gratuidade. O cristianismo não pode ser diluído numa ética, não pode regredir para o restauracionismo nem deixar-se instrumentalizar pelo poder. O amor contra a morte e mais forte do que ela narrará a ressurreição do Senhor, a gratuidade de Deus, a possibilidade de continuar a fazer ressurgir a vida amando até ao fim. O cristianismo tornar-se-á assim o testemunho e o anúncio sedutor de uma maneira diferente de ser homem. Algumas experiências concretas de caminhos diferentes que amam e constroem a comunhão eclesial foram apresentados como experiências concretas dessa comunhão enriquecedora na diferença, e mostraram como afinal é possível viver a comunhão.

Fátima 07-09-2006
José Carlos Carvalho (jcarvalho@porto.ucp.pt)