O Bom Pastor:

Formação do Clero da Arquidiocese de Braga

12.6.06

Simpósio dos Presbíteros em Fátima: A comunhão na vida da Igreja

A afirmação da Igreja como «comunhão» – communio – de todos os crentes (ou «santos») é uma das características da eclesiologia do Concílio Vaticano II. Mas não pensemos que se trata de simples moda teológica ou pastoral. Isso corresponde a uma grande tradição de leitura da realidade eclesial e a algo teologicamente fundamental. Por isso, falar da realização da communio na vida da Igreja implica uma breve abordagem dos seus fundamentos teológicos.
1. Fonte
Ora, falar de fundamentos teológicos implica, por seu turno, falar de Deus e do seu significado para a nossa existência, neste caso enquanto existência numa comunidade a que chamamos Igreja. E é precisamente a esse nível que deve iniciar-se a consideração dos possíveis significados da communio.
O Deus em que acreditamos é Pai, Filho e Espírito – é uni-trino. Acolhê-lo e vivê-lo como tal implica conhecê-lo como relação de três pessoas diferentes, na unidade de um único Deus. Parecendo uma doutrina abstracta e mesmo difícil, trata-se de algo fundamental e, nesse sentido, simples. O Deus em quem acreditamos é pura relação de diferentes. Assenta na diferença das pessoas que o constituem (e não na sua absoluta igualdade) assim como na interligação das mesmas (e não no alheamento mútuo). Por isso, podemos dizer que Deus é, antes de tudo, comunhão. É isso que significa, basicamente, o resumo joanino da noção cristã de Deus como amor: Deus caritas est.
Ora, se podemos compreender Deus como comunhão, devemos compreender toda a comunhão à imagem e semelhança da comunhão divina. De facto, sendo Deus a fonte de tudo, e sendo o ser humano – enquanto ser de relações sociais – imagem e semelhança do seu Deus, então as relações inter-humanas serão tanto mais verdadeiras quanto mais reflectirem a fonte.
Nessa correspondência a Deus, vai-se realizando, ao longo da história humana, a salvação, quer a nível pessoal quer a nível universal. Assim sendo, a história do ser humano, em perspectiva cristã, destina-se a transformar toda a realidade em Reino de Deus, isto é, em realidade orientada a partir do Deus-comunhão e para o Deus-comunhão.
2. Missão
Ora, essa transformação, enquanto acção do Espírito em nós, é precisamente missão da Igreja. Poderíamos, desse modo, definir esta como a comunidade daqueles que, acolhendo o Espírito de Deus, trabalham na transformação do mundo – sobretudo do mundo inter-humano – em imagem Sua. Essa é a sua razão de ser, a sua «essência». Se a Igreja não for isso, simplesmente não será Igreja.
Uma das formas de ir realizando essa transformação é a construção da própria comunidade eclesial de acordo com a dimensão do Reino de Deus. A Igreja será, por isso, tanto mais fiel a si mesma e à sua missão, quanto mais se configurar como imagem de Deus entre nós. Ou, de modo ainda mais forte, quanto mais se tornar «sacramento» de Jesus Cristo e da sua acção salvífica entre os humanos.
Ora, a configuração da comunidade eclesial como sacramento de Deus implica que ela se torne «sinal visível» do Deus uni-trino, isto é, da communio divina. Assim sendo, a communio eclesial é a forma como a Igreja, ao longo da história humana, é fiel à sua verdade e à sua missão. E as negações dessa comunhão são outras tantas negações da sua própria identidade, como infidelidade a si mesma e ao seu Deus.
3. Acção
Quais as implicações de tudo isto, no quotidiano das comunidades eclesiais? Fundamentalmente e em cada cristão, a consciência de ser um membro activo e responsável na construção dessa comunhão. Responsabilidade essa que pode assumir as mais variadas formas de realização.
A comunhão trinitária implica a relação de pessoas diferentes que, nessa relação, não perdem a sua diferença ou identidade, antes aí a constroem. Convém, por isso, acentuar que a comunhão construída eclesialmente não pode seguir o modelo da uniformidade, que anula as diferenças pessoais entre os diversos membros. Só uma comunhão construída com base em identidades pessoais diferentes – como numa família – é verdadeira comunhão. Caso contrário, não passará de massa uniforme ou de imposição da identidade de alguns a todos os outros.
Mas, como é óbvio, a comunhão também não se constrói a partir de identidades individuais egoisticamente encerradas em si mesmas. A ausência de relação, na consciência da pertença a uma mesma comunidade, implica a completa ausência de comunhão. O ponto de partida de qualquer comunhão é a capacidade de morrer para si, dando-se ao outro.
Assim sendo, a comunhão na Igreja implica a construção de comunidades em que cada cristão encontre a sua identidade própria, precisamente na sua entrega ao outro diferente e na dedicação a essa diferença. Assim, poderá ser uma comunhão de pessoas – e não uma soma de indivíduos isolados ou uma massa anónima de consumidores sem identidade própria.

Prof. Doutor João Duque