O Bom Pastor:

Formação do Clero da Arquidiocese de Braga

31.1.07

A VIDA HUMANA EM GESTAÇÃO

(foto de Anne Geddes)

É curioso notar que a Sagrada Escritura não contém nenhum texto, de forma clara e explícita, que condene a prática do aborto. Mas toda a cosmovisão bíblica assenta numa clara opção pela vida, já que o Deus dos cristãos «não é um Deus de mortos, mas de vivos» (Mt. 22, 32). Ao longo da história da Igreja sublinhou-se constantemente o valor da vida em gestação. Logo no princípio da era cristã, textos básicos, que espelham as opções fundamentais dos primeiros cristãos, como a Didaché, a Epístola a Diogneto; Atenágoras; e Tertuliano (para falar apenas nos primeiros 3 séculos) são manifestações inequívocas do «não» da comunidade cristã ao aborto e o «sim» à vida, dom de Deus que é Amor e Criador. Desde então, a doutrina oficial católica manteve sempre uma permanente postura contrária à realidade do aborto e afirmativa em relação com a vida em gestação.
Esta intransigência na defesa da vida humana trouxe, como todos sabemos, alguns dissabores e confusões aos cristãos. O que é preciso, a meu ver, é encontrar uma nova metodologia para falar destas questões. Aquilo que se propõe a referendo não são os casos de aborto terapêutico; aborto eugénico ou aborto humanitário ou ético. Todos estes casos estão já consignados na nossa legislação. O que é matéria de referendo é o chamado aborto psico-social, ou seja, o aborto provocado quando a gravidez resulta «não desejada» por razões de carácter social ou psíquico; problemas económicos, gravidez em mulheres solteiras ou como consequência de relações extra-conjugais, motivos psicológicos na mulher. Estes tipos de aborto são os mais frequentes.
É neste caso que se coloca um enorme confronto ético que discute dois valores: o valor fundamental da vida humana e o valor da liberdade. É nisto que se centra todo o debate e não tanto sobre se a mulher deve ser penalizada ou não (recordo que depois das 10 semanas o aborto será sempre penalizada pela lei!). Qual é o valor maior: a vida de um ser, que a ciência médica, filosófica e teológica, considera, pelo menos, «vida com destino humano» ( Gonzalez Faus), ou a liberdade da mulher de colocar um fim a essa vida?
Pode-se afirmar o que se quiser, mas a questão básica em toda a discussão ética sobre o aborto centra-se no direito à vida do não nascido. Tem um direito fundamental à vida, como atribuímos ao recém-nascido, ou existe algum fundamento objectivo para lhe conferir um valor menor ou nenhuma relevância ética ou jurídica?
A Igreja defende que a aventura da vida começa com a Fecundação, e o seu parecer vai acompanhado com os mais recentes avanços da ciência. Por isso, a sua posição é o reconhecimento da imoralidade do aborto tomado globalmente. A Igreja não tem que ser «politicamente correcta». Ela não deve temer os rótulos de «conservadora», «anti-progressista» e de «direita». Ao dizer «não» no referendo, a Igreja pretende afirmar que a vida humana, ainda que em potência, é o valor fundamental e, por isso, deve ser protegida. O «não» no referendo é um grito contra o nosso sistema político que foi e é incapaz de encontrar as soluções económico-sociais para os problemas dos cidadãos. O «não» no referendo é uma chamada de atenção ao desejo desenfreado de protagonismo político; o «não» no referendo é um sinal de que «ser progressista significa defender a vida e nada mais» (Adolfo Perez Esquivel, prémio Nobel da Paz); o «não» no referendo é também, ou deve ser, um compromisso por estar cada vez mais atento às necessidades dos seres humanos mais débeis, como os doentes, os velhos, as crianças violentadas e abusadas sexualmente; as mulheres exploradas; os desempregados e os pobres; o «não» no referendo é um «sim» à vida, mas sem fundamentalismos nem espírito de Cruzada; é um «não» EM CONSCIÊNCIA!

Mário Rui de Oliveira

Promover a cultura da vida



«Também faz parte da missão essencial da família cristã na sociedade, defender e promover uma autêntica cultura da vida. Isso inclui a formação para a paternidade responsável, na fidelidade ao Magistério da Igreja. Inclui, também, a formação dos filhos na afectividade e na sexualidade, de modo que eles cheguem a alcançar uma recta consciência e possam agir de acordo, não com modas ou influências exteriores, mas com os valores aprendidos do Evangelho e dos ensinamentos da Igreja. Inclui, ainda, a defesa da vida em todas as circunstâncias, desde o nascimento até à morte. A preocupação com a vida inclui a defesa da justiça social, do direito ao trabalho justamente remunerado, do direito à habitação condigna e ao acesso oportuno aos serviços de saúde, do direito das pessoas portadoras de deficiência serem inseridas na vida familiar, social e profissional, do direito dos mais idosos serem integrados na comunidade familiar e na sociedade.
O apoio à vida nascente, desde o momento da concepção, é uma das formas de defesa e promoção da vida. Reconhecendo que para algumas mães a maternidade não desejada constitui um grave problema, as famílias cristãs devem, em associação, antecipar-se ao dever do Estado em defender a vida humana e oferecer respostas de ajuda às mães nessa situação, através de diversos tipos de instituições e iniciativas.»
(Carta Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa, A Família, esperança da Igreja e do mundo, Maio 2004, nº 61)

A família é o lugar ideal para acolher a vida em todas as suas formas e etapas. A sociedade de hoje encara a ciência como a oportunidade de adaptar a realidade e a vida às conveniências de bem estar e prazer. No entanto o sofrimento está inevitavelmente ligado a esta cultura de morte.

Domingos Paulo Oliveira

30.1.07

Em memória de um padre que tentou amar!


A vida não é um sonho,
Um plano humano;
Ela é anuência.
Deus guia-nos pelos acontecimentos:
A nossa tarefa é dizer sim ou dizer não.
A vida é mais consentimento
Do que escolha.
Escolhemos tão pouco!
A única liberdade do homem,
É manter a vela estendida
Ou de a deixar sucumbir, cansar.
O vento não é nosso.
Deus sopra:
A nós de tomar o vento!


Abbé Pierre

«A Palavra para viver»: Bruno Forte (12)

(Ilda David', «Josué 6», 2006)

12. A Palavra para viver

A oração de um Monge, intimo e assíduo na meditação das Escrituras, ajuda-nos a entrar na escuta da Palavra de Deus a partir do exemplo de Maria: «Nós te pedimos, Senhor, que nos faças conhecer aquele que amamos, pois nada procuramos fora de Ti. Tu és tudo para nós: a nossa vida, a nossa luz, a nossa salvação, o nosso alimento, a nossa bebida, o nosso Deus. Eu te suplico, ó Jesus, inspira os nossos corações com o sopro do teu Espírito e trespassa com teu amor nossas almas para que cada um de nós possa dizer com toda a verdade: faz-me conhecer aquele que minha alma ama; estou na verdade ferido por teu amor. Óh Senhor como desejo que elas fiquem impressas em mim. Feliz a alma trespassada pela caridade! Ela procurará a nascente e aí beberá. Bebendo-a, sempre terá sede. Matando a sede, almejará ardentemente aquele de quem sempre tem sede, embora dele beba continuamente. Deste modo o amor é sede para a alma que sempre o procura com ânsia, é ferida que cura» (S. Columbano, Istruzione 13 su Cristo fonte de vita, 2-3, Opera, Dublino 1957, 118-120). Só o amor abre ao conhecimento do Amado: «Podia compreender o sentido das palavras de Jesus, somente aquele que repousou sobre o peito de Jesus» (Origene, In Joannem 1,6:Pg 14,31). Apoia também tu a cabeça sobre o peito do Senhor, como o discípulo amado na Ultima Ceia (cf. Jo 13, 25) e escuta as Suas palavras, deixando que o Seu coração fale ao teu! È quanto peço a Deus para ti, enquanto «te confio ao Senhor e à Palavra da Sua graça que tem o poder de edificar e de te conceder a herança com todos os santos» (cf. Act 20,32). Ámen!

Bruno Forte, Arcebispo de Rieti-Vasto
[tradução de Mário Rui de Oliveira]

29.1.07

«A Palavra para viver»: Bruno Forte (10-11)


10. Da Palavra ao Silêncio

Da escuta obediente da Palavra brota, então, a eloquência silenciosa da vida: «Nós agradecemos continuamente a Deus porque tendo recebido a palavra divina pela pregação, a acolheste não como palavra de homens mas como ela é verdadeiramente, palavra de Deus que age em vós os crentes» (1Tes 2,13). Esta existência habitada pelo Eterno nutre-se de novo da escuta do Seu Silencio, que nos alcança através da Palavra e nos abre ao silencio do desejo e da esperança. Quem ama a Palavra, sabe o quanto é necessário o silencio, interior e exterior, para a escutar verdadeiramente, e para deixar que a sua luz nos transforme mediante a oração, a reflexão e o discernimento: no clima do silencio, à luz das Escrituras, aprendemos a reconhecer os sinais de Deus e a referir os nossos problemas ao desígnio da salvação que a Escritura nos testemunha. A escuta é o silencio fecundo habitado pela Palavra: «O Pai pronunciou uma palavra, que foi seu Filho e sempre a repete num eterno silencio; por isso em silencio dever ser sempre escutada pela alma…» (S. João da Cruz, Sentenze. Spunti di amore, n. 21, in Opere, Roma 1972, 1095). Não pronuncies nunca, então, a palavra da vida sem primeiro teres longamente caminhado pelos caminhos do silêncio, na escuta meditada e profunda da Palavra que vem da Eternidade!

11. O ícone de Maria, Virgem da escuta

Maria é o ícone da escuta fecunda da Palavra: ela nos ensina a acolhê-la, a guardá-la e a meditá-la incessantemente: «Maria, por seu lado, observava todas estas coisas meditando-as em seu coração» (Lc 2,19). Imagem perfeita da Igreja, Maria deixa-se plasmar pela Palavra de Deus: «Faça-se em mim segundo o que disseste» (1,38). E a escuta faz-se dom de amor: «a Virgem da anunciação vai até Isabel para a ajudar nas suas necessidades. Mulher da escuta, Maria apresenta-se na visitação como Mãe do Amor: «a que devo que a mãe do meu Senhor venha a mim?» (2,43). A sua voz traz a alegria messiânica: «Eis que quando a voz da tua saudação chegou aos meus ouvidos o menino exultou de alegria no meu seio» (v. 44). A sua bem-aventurança foi ter ouvido e acreditado na Palavra do Eterno: «Feliz aquela que acreditou no cumprimento das palavras do Senhor» (2,45). A Maria —criatura da Palavra, que intercede por nós na glória do Deus— peço para nos ajudar a viver como Ela na escuta da Palavra, para acolhermos o Verbo da vida e levá-lo aos outros, na transparência e no empenho de todos os nossos dias. Rezar com Maria, confiar-te à Sua intercessão (por exemplo com a oração do rosário, tão rica de motivos bíblicos), te ajudará a guardar e viver as divinas Escrituras.

27.1.07

Análise da Cultura


A análise dos complexos movimentos que animam a nossa cultura é, sem dúvida, um dos pressupostos fundamentais de qualquer acção pastoral, para não ser completamente desincarnada. Actualmente existem muitos subsídios para o efeito.
Hoje gostaria de recordar e homenagear um sociólogo, filósofo e teólogo espanhol, falecido prematuramente no verão passado, que deixou um dos mais abundantes contributos para o efeito: José Maria Mardones. Era um amigo de Braga, tendo tido intervenções na Faculdade de Teologia e na Universidade do Minho. A melhor forma de evocar a sua memória seria tornando fértil o seu trabalho.
Os seus trabalhos, que vão desde a sociologia mais científica até às abordagens mais acessíveis, debruçam-se sobretudo sobre elementos fundametais da nossa cultura contemporânea, dita pós-moderna. Grande parte dos seus livros foi publicada pela Editorial Sal Terrae e pela Editorial Verbo Divino. A obra «Para compreender as novas formas de religião» está traduzida para português. Trata-se de uma leitura «obrigatória» para todos os agentes de pastoral.

IV Domingo do Tempo Comum




Estamos ainda na sinagoga de Nazaré, onde Jesus durante a liturgia do Sábado leu a profecia de Isaías sobre o profeta-servo de Deus convidado a levar a boa nova aos pobres, a proclamar a libertação aos oprimidos, a pregar o ano da misericórdia do Senhor (cf. Is 61,1-2). Jesus acaba de comentar estas palavras, dizendo aos habitantes de Nazaré que estavam ali presentes que elas se realizaram nele.

E eis que esta breve «homilia» impressiona os que a escutaram, os quais sentem as suas palavras como intrigantes, cheias de graça e de autoridade. Recordando a juventude percorrida por Jesus em Nazaré com a sua família, eles perguntam-se agora: «Não é ele o filho de José, o filho do carpinteiro?» Mas esta admiração pelas suas palavras não corresponde na realidade a uma verdadeira escuta de Jesus e à fé nele. E assim Jesus desde este seu primeiro gesto público se revela «sinal de contradição e que desvela os pensamentos mais profundos de muitos corações» (Lc 2,34-35), como tinha profetizado o velho Simeão acerca dele quando, quarenta dias depois do seu nascimento, lhe tinha sido apresentado no Templo.

Jesus repara nesta recusa da sua identidade, anunciada como realização pontual das palavras proféticas de Isaías. E exactamente porque não se detém nas impressões superficiais dos homens, mas olha os pensamentos que habitam seus corações (cf. Jo 2,24-25), quase se antecipa e denuncia as intenções dos seus interlocutores: «de certo me citareis o provérbio: Médico cura-te a ti mesmo, olha para ti, não nos faças o sermão a nós; cumpre mas é aqui também no meio de nós os milagres que realizaste em Cafarnaum, e então conheceremos quem tu és!» Eis desvelados os pensamentos dos seus corações, eis o não acolhimento de Jesus na sua cidade, entre os seus, em sua casa (cf. Jo 1,11)!

Depois Jesus pronuncia palavras que revelam um outro cumprimento realizado naquele dia: «Nenhum profeta é bem recebido em sua casa». Da falência da sua pregação ele não tira motivos de desconforto e desconsolação; pelo contrário, vê nesse acontecimento uma confirmação da sua identidade: ele é verdadeiramente um profeta e, como tal, só pode ser recusado pelos seus irmãos na fé. Por isso Jesus recorda aos seus concidadãos e aos seus familiares que nada de novo está a acontecer na sinagoga de Nazaré; pelo contrário, renova-se aquilo que sempre aconteceu a todos os profetas. Aconteceu a Elias, sustentado e ouvido apenas por uma velha viúva estrangeira, uma fenícia de Sarepta de Sidónia (cf 1Re 17); aconteceu a Eliseu, o sucessor de Elias, que pode operar a cura do leproso só em favor de um pagão, Naamã o sírio (cf 2Re 5). Sim, os profetas tiveram sempre acolhimento e ouvidos não entre os crentes de Israel, mas nos não crentes provenientes dos gentios: os crentes muitas vezes estão tão satisfeitos e seguros da sua pertença que deixam de estar abertos para acolher palavras e acções «novas», não esperadas e não previstas, da parte de Deus e dos seus profetas…

Mas estas palavras de Jesus fazem enfurecer ainda mais os presentes. Tinham ido à sinagoga para o culto semanal, para escutar a Palavra de Deus, e de fronte a esta Palavra feita carne em Jesus (cf. Jo 1,14) em verdade não acreditam; mais, chegam até a recusar Jesus e a querer matá-lo lançando-o abaixo do cimo de uma colina. Face a esta violência colectiva que se abate sobre ele, Jesus não reage, mas «passando pelo meio deles retoma o seu caminho», segue o seu caminho: «escutem ou não, um profeta está no meio deles…» (Ez 2,5)…

Acontecia no antigo Israel, aconteceu a Jesus, aconteceu e acontece dentro das igrejas: os profetas enviados por Deus são mais ouvidos pelos de fora que pelos próprios irmãos, são acolhidos mais facilmente pelos não crentes que pelos crentes, encontram maior acolhimento junto dos pecadores manifestos que por aqueles que se pensam justos e bons. E nós, nós que lemos esta página, estamos dispostos a não nos escandalizarmos com as palavras de Jesus?

Enzo Bianchi
Prior de Bose
(tradução de Mário Rui de Oliveira)

«A Palavra para viver»: Bruno Forte (9)

(Caravaggio, A ceia de Emaús, 1600-1601, National Gallery of London)

9. A Palavra, fonte de alegria e de esperança

Se escutares a Palavra e a guardares, sentirás que a tua vida mora no próprio coração de Deus, donde nasce continuamente a confiança para o presente e a esperança para o amanhã: «Quem escuta estas minhas palavras e a põe em prática —diz Jesus— é semelhante a um homem sábio que construiu a sua casa sobre a rocha» (Mt 7,24). Esta confiança alimenta-se da alegria de sentir-se amado: «Quando as tuas palavras vieram ao meu encontro, devorei-as com avidez; a tua palavra foi a alegria e júbilo do meu coração, porque eu levava o teu nome, Senhor, Deus dos exércitos» (Jer 15, 16). Por isso os dois discípulos, no caminho de Jerusalém para Emaús, na explicação das Escrituras reencontraram o calor do coração, redescobriram as razões da esperança, foram envolvidos pela alegria do encontro (cf. Lc 24, 13-35). A Escritura, narração da história da aliança entre Deus e o Seu povo, é memoria viva deste grande amor, que suscita confiança Naquele que levará a cumprimento as Suas promessas. Dando-te razões de vida e de esperança, a Palavra abre-te ao amanhã de Deus e te ajuda a levá-lo no presente com a força dos humildes actos de fé e de simples gestos de caridade. Por esta sua força, a Palavra é também a razão da grande esperança que anima o dialogo ecuménico: se nos esforçarmos por ser discípulos da única Palavra, como poderemos considerar as nossas divisões mais importantes que a unidade à qual elas nos chama?

26.1.07

Carta do novo prefeito da Congregação para o Clero aos sacerdotes


Publicamos a carta que o cardeal Cláudio Hummes, OFM, novo prefeito da Congregação para o Clero, enviou aos sacerdotes através da página web desse dicastério vaticano (cfr. www.clerus.org).

Meus caros irmãos Sacerdotes

Sinto a necessidade de enviar-lhes, também através do nosso site Internet, uma cordial saudação.
Desde algum tempo encontro-me em Roma, chamado pelo amado Papa Bento XVI para colaborar com ele no serviço de amor aos presbíteros, aos diáconos, aos catequistas.
Permitam que, em primeiro lugar, dirija uma respeitosa saudação ao cardeal Darío Castrillón Hoyos, meu imediato antecessor.
É exatamente por sua larga visão que hoje posso confiar minha palavra aos misteriosos caminhos da informática.
Ele foi um verdadeiro amigo dos Sacerdotes; trouxe-lhes no seu coração de Pastor; rezou por vocês, amou-os.
Caros Amigos: agora compete a mim trazer-lhes no coração, rezar por vocês, amá-los.
Não lhes escondo que me sinto ainda um pouco ... “noviço”.
Tenho saudade do que deixei em São Paulo, no Brasil, mas como Abrãao, confiei em meu Senhor e meu Deus e eis-me aqui, para vocês Bispo, com vocês sacerdote.
Servir os padres! Que missão! Que amoris officium!
Sejamos portadores de uma identidade específica, que nos caracteriza constantemente em nosso ser e no nosso agir; sejamos consagrados e incorporados no agir de Cristo. E os gestos e palavras de Jesus sejam novamente atualizados no tempo e na história, provocando em quem os realiza “os mesmos sentimentos de Cristo” e os mesmos efeitos de salvação.
A Igreja, ao conferir o sacramento da Ordem, constitui ontologicamente o presbítero alter Christus, ou, como dizem alguns, ipse Christus: e o constitui ministro da Palavra, ministro dos atos proféticos e do amor pastoral de Cristo. A sua função, portanto, não se esgota na dimensão cultual mas completa-se na dimensão profética do anúncio da Palavra e na dimensão pastoral de guia da comunidade.
O Concílio Vaticano II tem belas expressões que sintetizam as funções do presbítero, delineando também a sua identidade: “Os presbíteros, quer se dediquem à oração e à adoração, quer ofereçam o sacrifício eucarístico e administrem os demais sacramentos, quer desenvolvam outros ministérios a serviço dos homens, contribuem sempre ao aumento da glória de Deus e, ao mesmo tempo, enriquecem os homens com a vida divina” (PO 2).
Sejamos orgulhosos e felizes, irmãos caros, por esta nossa identidade sacerdotal. Sejamos orgulhosos de ser padres. É verdade: a nossa é uma missão não fácil. Mas unidos a Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote, e com Maria, Mãe do primeiro Sacerdote e de todos os Sacerdotes, saberemos dar testemunho da esperança que existe em nós aos numerosos irmãos e irmãs que hoje precisam tanto do Caminho, da Verdade e da Vida.

Abençôo-os com grande afeto.

Do Vaticano, 24 de janeiro de 2007
Memória de São Francisco de Sales

Claudio Card. Hummes
Prefeito da Congregação para o Clero

«A Palavra para viver»: Bruno Forte (8)

(Moisés)

8. A Palavra, fonte de amor

As palavras do Deus Amor tornam-nos capaz de amar. É o amor o fruto que nasce da escuta verdadeira da Palavra: «Sede daqueles —adverte S. Tiago— que põem em prática a Palavra e não somente ouvintes, iludindo-vos a vós mesmos» (1, 22). Quem se deixa iluminar pela Palavra, sabe que o sentido da vida consiste não no fechar-se sobre si mesmo, mas naquele êxodo de si sem regresso, que é o amor. A escuta da Sagrada Escritura faz-te sentir amado e te faz capaz de amar: se te entregares sem reservas ao Deus que te fala, será Ele a doar-te aos outros, enriquecendo-te com todas as capacidades necessárias para te colocares ao seu serviço. Eis porque Bento XVI convida especialmente os jovens, colocados diante da vida, «a adquirir intimidade com a Bíblia, a tê-la à mão, para que seja como uma bússola que indica a estradaa seguir» (Mensagem para o Dia Mundial da Juventude de 2006). A palavra é guia segura porque —entre os muitos rumores do mundo— conduz-nos a empenharmo-nos pelos outros sob os passos de Jesus, a reconhecer neles a Sua voz que chama. As obras «sinais» da Caritas presente na nossa Igreja (os centros de escuta, as casas de acolhimento, as cantinas, etc), as diversas actividades de voluntariado, os desafios da justiça, da paz e da protecção do ambiente, as pessoas que todos os dias batem à porta do teu coração, esperam-te para perceber se a Palavra que escutas ti mudou verdadeiramente o coração. Se fizeres estas coisas, poderás sentir como dirigido a ti aquilo que diz o Senhor: «Todas as vezes que fizestes estas coisas a um só destes meu irmãos mais pequenos, foi a mim que o fizestes» (Mt 25, 37-40).

25.1.07

«A Palavra para viver»: Bruno Forte (7)



7. Uma via para acolher a Palavra: a «lectio divina»

Como ler a Palavra de Deus? Uma via maravilhosa para a aprofundar e saborear é a lectio divina, que constitui um verdadeiro itinerário espiritual em várias etapas. A primeira é a lectio, a leitura propriamente dita. Lê atentamente, várias vezes, um passo da Escritura e pergunta a ti mesmo: «O que diz o texto?». Passa depois à meditatio, a meditação, que é como uma pausa interior: recolhe-te e pede a Deus: «O que me dizes a mim com estas Tuas palavras?». Coloca-te na disponibilidade do jovem Samuel: «Fala, Senhor, porque o Teu servo escuta!» (1 Sam 3, 10). Responde, depois, com a oração, a oratio, dirigindo-te assim ao Deus que te falou: «O que direi a Ti, meu Senhor?». A resposta a darás convidando o teu Deus a habitar na casa do teu coração, para que transforme os teus pensamentos e passos. Chegarás, assim, à contemplatio, aquele contemplar agindo, no qual o teu coração, tocado pela presença de Cristo, se perguntará: «O que devo fazer agora para realizar esta Palavra?» e procurará de viver em conformidade. Atenção, inteligência, juízo, decisão: através destas quatro etapas, vividas no encontro com a Palavra, ela será para ti como «luz que brilha em lugar escuro, até que desponte o dia e a estrela da manhã se eleve nos vossos corações» (2 Ped 1,19). Assim, a Escritura poderá guiar-te e acompanhar-te sobre as estradas da vida: «Luz para os meus passos é a Tua palavra, luz sobre o meu caminho» (Sl 118 [119], 105). Por vezes poderá parecer que a Palavra lida não te diga nada: não percas a coragem! Regressa a ela e invoca: «Senhor, concede-me vida segundo a tua palavra!» (v. 107). Esta tua dificuldade foi já vivida por muito antes de ti, Abraão, sara, Moisés, Jeremias, Ester, João Baptista, Pedro, Paulo: estes, e outros homens e mulheres da Bíblia, podem dizer-te da dificuldade e da alegria de crer. Tenta encontrá-los meditando os textos que narram a sua história com as etapas da lectio divina: descobrirás o quanto estão próximos das tuas perguntas e como a sua experiencia te fala (é a via que busco seguir nos encontros do «laboratório da fé», dirigido sobretudo aos jovens).

A conversão de Paulo

(Caravaggio, La conversione di san Paolo, Roma)

24.1.07

«A Palavra para viver»: Bruno Forte (6)



6. A obediência da fé à Palavra

À Palavra do Senhor correspondes verdadeiramente se aceitares levar naquela escuta acolhedora, que é a obediência da fé, «com a qual o homem se abandona totalmente a Deus em liberdade, prestando o pleno obséquio da inteligência e da vontade a Deus que revela e confiando voluntariamente na revelação dada por Ele» (Concilio Vaticano II, Lúmen Gentium, 5). O Deus, que se comunica ao teu coração, chama-te a oferecer-Lhe não qualquer coisa de ti, mas tu mesmo. Esta escuta acolhedora faz-te livre: «Se permanecerdes fieis à minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos; conhecereis a verdade e a verdade vos fará livres» (Jo 8, 31-32). Na Palavra é o próprio Deus a chegar a ti e a transformar-te: «A palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante que a espada de dois gumes; ela penetra até ao ponto de divisão da alma e do espírito, das junturas e da medula e perscruta os sentimentos e pensamentos do coração» (Heb 4, 12). Entrega-te, então, à Palavra. Confia nela. Ela é sempre fiel, como Deus que a diz e a habita. Por isso, se acolheres com fé a Palavra, nunca estarás só: na vida, como na morte, entrarás através dela no coração de Deus: «Aprende a conhecer o coração de Deus nas palavras de Deus» (S. Gregório Magno, Registo das cartas, 5, 46). Escutar, ler, meditar a Palavra; saboreá-la, celebrá-la; vivê-la e anunciá-la em palavras e obras: é este o itinerário que se abre diante de ti, se compreenderes que na Palavra de Deus está a fonte da vida. Deus em pessoa visita-te nela: por isso a Palavra implica-te, rapta-te o coração e oferece-se à tua fé como ajuda e defesa no crescimento espiritual.

23.1.07

Requiem por um homem que «passou fazendo bem»: Abbé Pierre



Bento XVI enviou aos Bispos da França uma mensagem de condolências pelo falecimento do Abbé Pierre, destacando a “luta contra a miséria” que o mesmo travou ao longo de toda a sua vida.

Num telegrama publicado pela Santa Sé na manhã de hoje, o Papa “dá graças” pela acção do Abbé Pierre em “favor dos mais pobres, através da qual ele deu um testemunho da caridade que nos vem de Cristo”.

Aos Companheiros de Emaús espalhados pelo mundo e às pessoas que se reunirão para o último adeus ao Abbé Pierre, o Papa envia a sua bênção apostólica.

O fundador da Comunidade Emaús faleceu esta segunda-feira, aos 94 anos, no hospital parisiense de Val-de-Grâce. A imprensa francesa é hoje unânime no elogio ao combate contra a exclusão, em todas as suas formas, que o Abbé Pierre levou a cabo.

O presidente da Conferência Episcopal Francesa, Cardeal Jean Pierre Ricard, lembra na mensagem que envia em nome dos Bispos do país “o excepcional testemunho de compromisso e humanidade que foi a vida do Abbé Pierre, fonte de esperança para todos nós”.

O funeral terá lugar na manhã da próxima sexta-feira, na Catedral de Notre-Dame, em Paris. A sepultura irá acontecer numa cerimónia íntima, na Comunidade de Esteville, em que vivia.

«A Palavra para viver»: Bruno Forte (5)


5. A Igreja, criatura e casa da Palavra

Para nos tornar capazes de acolher fielmente a Palavra de Deus, o Senhor Jesus quis deixar-nos — juntamente com o dom do Espírito — também o dom da Igreja, fundada sobre os Apóstolos. Foram esses que acolheram a palavra da salvação e a transmitiram aos seus sucessores como jóia preciosa, guardado no inviolável cofre do povo de Deus peregrino no tempo. A Igreja é a casa da Palavra, a comunidade da interpretação, garantida pela condução dos pastores a quem Deus quis confiar o Seu povo. A leitura fiel da Escritura não é obra de navegadores solitários, mas deve ser vivida na barca de Pedro: o anúncio, a catequese, a celebração litúrgica, o estudo da teologia, a meditação pessoal ou em grupo, vivida também em família, a inteligência espiritual amadurecida no caminho da fé, são outros tantos canais que nos tornam familiares a Bíblia na vida da Igreja. É pois particularmente belo e fecundo meditar a Palavra segundo a distribuição que faz dela a liturgia de todos os dias, deixando-se guiar pela sua mão na exuberante floresta dos textos bíblicos. Acompanhados pela Igreja Mãe, nenhum baptizado deve sentir-se indiferente à Palavra de Deus: escutá-la, anunciá-la, deixar-se iluminar por ela para iluminar os outros é trabalho que diz respeito a todos, cada um segundo os dons que recebeu e a responsabilidade que lhe foi confiada, com a paixão missionária que Cristo pede aos Seus discípulos, sem excluir ninguém (cf. Mc 16,15: por isso quis na diocese uma Escola da Palavra aberta a todos!). Dos sacerdotes aos diáconos, dos pais aos catequistas, dos consagrados às consagradas, dos teólogos aos professores, dos membros das associações e movimentos a cada baptizado, jovem ou adulto, todos somos chamados a ser Igreja gerada pela Palavra que anuncia a Palavra: também tu!

22.1.07

«A Palavra para viver»: Bruno Forte (3-4)


3. A Palavra faz-se carne

«E o Verbo se fez carne e habitou no meio de nós» (Jo 1, 14). O cumprimento da revelação, dom supremo do amor divino, é Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem por nós, a Palavra única, perfeita e definitiva do Pai, o qual n’Ele nos diz tudo e nos dá tudo. «Deus, que tinha já falado nos tempos antigos muitas vezes e de diversos modos aos pais por meio dos profetas, ultimamente, nestes dias, falou a nós por meio do Filho, que foi constituído herdeiro de todas as coisas e por meio do qual fez também o mundo» (Heb 1,1). Em Jesus os testemunhos do Primeiro Testamento adquirem e manifestam o seu pleno significado: «Toda a Escritura é um livro só e este livro é Cristo» (Hugo de São Vítor, A arca de Noé, II, 8). Nutrir-se da Escritura é alimentar-se de Cristo: «A ignorância das Escrituras —afirma S. Jerónimo— é ignorância de Cristo» (Comentário ao Profeta Isaías, PL 24, 17). Quem deseja viver de Cristo deve escutar incessantemente as divinas Escrituras, não excluindo nenhuma. É nelas que se revela a face do Amado, neste hoje que passa e no dia do amor sem fim: «O teu rosto, Senhor, eu procuro: procurar a face de Jesus deve ser o desejo ardente de todos nós cristãos… Se perseveramos no procurar o rosto do Senhor, no fim da nossa peregrinação terrena será Ele, Jesus, o nosso eterno gáudio, a nossa recompensa e gloria para sempre» (Bento XVI, Discurso de 1 de Setembro 2006 no Santuário da Santa Face de Manoppello).

4. O Espírito intérprete da Palavra

Como encontrar o Vivente no jardim das Escrituras, semelhante ao jardim do sepulcro? Para que nos aconteça o que aconteceu à mulher, cujos olhos foram abertos para reconhecer o Senhor Ressuscitado naquele que antes tinha sido confundido com o jardineiro (cf. Jo 20, 15), é necessário ser chamados pelo Amado, tocados pelo fogo do Seu Espírito: «O Consolador, o Espírito Santo que o Pai mandará em meu nome, ele vos ensinará todas as coisas e vos recordará tudo o que eu vos disse» (Jo 14, 26). O Espírito Santo, que guiou o povo eleito inspirando os autores das Sagradas Escrituras, abre o coração dos crentes à inteligência tudo o que nelas está contido. Assim a Escritura «cresce com aquele que a lê» (S. Gregório Magno, Homilias sobre Ezequiel, I, 7, 8). Nenhum encontro com a Palavra de Deus serás vivido, então, sem ter sido invocado, primeiramente, o Espírito, que abre o livro selado, movendo o coração e dirigindo-o para Deus, abrindo os olhos da mente e dando doçura no consentir e no acreditar na verdade (cf. Concilio Vaticano II, Constituição sobre a Divina Revelação, Dei Verbum, 5). É o Espírito que nos faz entrar em toda a Verdade através da porta da palavra de Deus, tornando-nos construtores e testemunhas da força libertadora que essa possui e que é assim necessária a um mundo no qual tantas vezes se perdeu o gosto e a paixão pela Verdade. Antes de ler as Escrituras, invoca sempre aquele que dá os dons, a luz dos corações: o Espírito Santo!

XV Semana de Estudos Teológicos em Braga


Começou hoje, dia 22 de Janeiro, a Semana de Estudos de Teologia, na Faculdade de Teologia, em Braga, sobre a Transmissão da Fé.

Transmissão da Fé
Novos desafios - desafios de sempre

Dia 22 Horizontes

09.30h: Abertura (Prof. Doutor Pio G. Alves de Sousa)
09.45h: Escritura, Tradição e Testemunho
(Prof. Doutor Dom Carlos Moreira Azevedo)
11.45h: Transmissão da fé: novos desafios culturais
(Prof Doutora Isabel Varanda)
Dia 23 Confrontos

09.30h: Actualidade de conteúdos esquecidos
(Prof. Doutor Juan Antonio Martínez Camino)
11.45h: O conflitos das linguagens
(Prof. Doutor João Duque)

Dia 24 Reencontros

09.30: Familia, afectividade e adesão crente
(P. Dr. Vasco Pinto de Magalhães S.J)
11.45h: Ritualidade simbólica e incarnação da fé
(Dr. Manuel Joaquim Fernandes da Costa)

20.1.07

III Domingo do Tempo Comum

(Rafael, Profeta Isaías, Igreja de Santo Agostinho, Roma)

III DOMINGO DO TEMPO COMUM
ANO C

Lc 1, 1-4; 4, 14-21


O Evangelho deste Domingo é composto por dois excertos: o prólogo, isto é o inicio do livro redigido por Lucas, e o inicio da pregação de Jesus. Colocados um ao lado do outro estes dois textos fazem-nos compreender como a Palavra de Deus se tenha tornado primeiramente Escritura, Bíblia, Livro Santo e depois, em cada época -— e portanto também para nós hoje— Palavra vivente para a assembleia dos crentes.

Iniciando o seu livro, Lucas dirige-se ao leitor cristão, «amante de Deus» —este é o sentido do nome de Teófilo— e lhe declara a sua intenção: assim como antes dele foi contada a história de Jesus, e o fizeram depois de ter ouvido o testemunho sobre este homem por aqueles que tinham sido cúmplices na sua vida, daqueles que o tinham conhecido, escutado e visto até se tornarem «servos da Palavra», também ele «depois de uma investigação acurada» decidiu escrever uma narração, isto é o Evangelho.

Sim, o Evangelho é um conto escrito sobre aquilo que Jesus fez e disse; ou melhor, é um contar a narração que Jesus com toda a sua vida fez de Deus. Eis porque nestes breves versículos iniciais se diz muito, nos vem exposto o essencial da nossa fé: «a Deus nunca ninguém o viu, mas Jesus que é o Filho enviado por Ele, contou-nos acerca Dele» 8cf. Jo 1, 18); e que, foi associado à sua vida, ou seja, quem o viu, escutou e tocou, por sua vez nos contou acerca de Jesus (1 Jo 1, 1-3), que depois alguns homens, os evangelistas, puseram por escrito. Mas isto é o que acontece desde sempre no seio da comunidade dos crentes em Deus, no Antigo e no Novo Testamento, e é o que acontece ainda hoje na igreja…

Um exemplo de tal processo é-nos dado pela segunda parte do excerto de hoje, tirado do quarto capítulo do Evangelho. È-nos narrado a vida dos crentes hebreus no tempo de Jesus: mesma na perdida aldeia de Nazaré no dia de Sábado eles se reuniam na sinagoga para escutar a Palavra de Deus contida na Lei e nos Profetas, livros escritos no passado, qual testemunho de como Deus falou ao seu povo. E eis que Jesus, depois de alguns anos de ausência, regressa á sua aldeia donde é natural, Nazaré, e participa na liturgia da Sinagoga: escuta um texto da Torah, participa no canto responsorial de alguns salmos, depois toca a ele ler a segunda leitura. Recebido o rolo dos Profetas, abre-o e lê o texto previsto para aquele dia, uma passagem do profeta Isaías no qual um profeta anónimo conta a própria vocação: o Espírito de Deus desceu sobre ele e pôs a sua morada nele; com a força que lhe foi dada pelo Espírito este profeta e servo do Senhor foi enviado a levar a boa nova aos pobres, a proclamar a libertação a todos os oprimidos, a pregar o ano da misericórdia do Senhor (Is 61, 1-2).

Lido o texto, cabe a Jesus dar a explicação, e ele o faz através de uma «homilia» que resume em poucas palavras: «hoje se cumpriu esta Escritura». Ou: o profeta apresentado por Isaías é o próprio Jesus, a Palavra de Deus testemunhada pelo antigo profeta e escutada por quantos se encontram na sinagoga se realiza exactamente nele! Isto significa que aquela página bíblica constitui o programa da missão de Jesus: eis o que ele fará e dirá, eis a boa noticia, o Evangelho que através dele se realiza… E assim a palavra revelada por Isaías, por ele escrita até tornar-se livro entre os livros da Bíblia, lida na liturgia celebrada em Nazaré, ressoa como Palavra de Deus cumprida em Jesus. Lucas narra pois este acontecimento no evangelho que, lido hoje na assembleia cristã, ressoa como Palavra que pede para ser realizada por cada cristão e por toda a Igreja.

Mas temos nós consciência, aqui e agora, que quando a Palavra de Deus contida na Escritura é proclamada, somos nós, ouvintes, que a devemos realizar? Sabemos que cabe a nós transmitir com a nossa vida a narração de Deus que nos foi dada por Jesus?

Enzo Bianchi
Prior de Bose

(tradução de Mário Rui de Oliveira)

Oração pela Unidade


A Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos – uma das iniciativas mais antigas, mais perseverantes e mais abrangentes do movimento ecuménico – é, sem dúvida, a mais fundamental representação do ecumenismo. De facto, após décadas de processo dialógico – por oposição a séculos de separação e mesmo de confrontos – as Igrejas envolvidas adquiriram consciência de que a unidade que perseguem é tudo menos fácil de conseguir. Em realidade, só um «milagre» pode realizá-la.
Ora, esse «milagre» possui, pelo menos, três «ingredientes» fundamentais: a acção transformadora do Espírito; o acolhimento dessa acção, por parte das Igrejas; a acção concreta de cada cristão. Com o primeiro elemento, poderemos contar sempre; com o segundo, algumas vezes, cada vez mais; com o terceiro, menos frequentemente. Mas o cerne da questão é que cada um deles só é possível se existirem os outros dois. A acção do Espírito é nula, se não for acolhida; e o acolhimento manifesta-se, precisamente, na acção própria.
O núcleo da súplica dos cristãos orienta-se, por isso, para que seja dada capacidade de acolher a própria acção do Espírito, trabalhando incansavelmente pela unidade. Por isso é que a oração é o caminho essencial de todo o processo: na medida em que impulsiona o acolhimento, na medida em que o manifesta e na medida em que realiza unidade.
Este ano, os cristãos são convocados a relembrar – a tornar presente, de modo vivo – o facto de que são chamados a escutar e a servir os seus irmãos humanos, todos, mas especialmente os que são inocente ou injustamente atingidos pelo sofrimento. Nisso, sentimo-nos unidos; nisso somos um só.
Mas somo-lo de modos diversos; e é bom que assim seja, mesmo se dentro de limites. Por isso, a oração pela unidade deverá suplicar ao Espírito o aumento da capacidade de construir unidade no respeito e mesmo na promoção da diversidade. Esse será o caminho do ecumenismo, ou não terá caminho algum.

«A Palavra para viver»: Bruno Forte (2)

(Caravaggio, S. Jerónimo, Igreja S. Luis dos Franceses, Roma)

2. Deus fala!

Somente Deus poderia romper o silencio dos céus e irromper no silencio dos corações: só Ele podia dizer-nos — como nenhum outro-— palavras de amor. Foi o que aconteceu na sua revelação, inicialmente ao povo eleito, Israel, e depois em Jesus Cristo, a Palavra eterna feita carne. Deus fala: através de acontecimentos e palavras intimamente ligadas, Ele comunica-Se a Si mesmo aos homens. Postas por escrito sob a inspiração do Seu Espírito, estes textos constituem a Sagrada Escritura, a morada da Palavra de Deus nas palavras dos homens. A palavra de Deus é o próprio Deus no sinal da Sua palavra! Essa participa do Seu poder: «Como a chuva e a neve descem o céu e não regressam sem ter irrigado a terra, sem tê-la feito fecundar e germinar, para que dê a semente ao semeador e pão para comer, assim será a palavra que sai da minha boca: não regressará a mim sem efeito, sem ter realizado o que desejo e sem ter cumprido aquilo pelo qual a enviei» (Is. 55, 10s). O termo hebraico dabar , traduzido habitualmente por «palavra», significa ao mesmo tempo palavra e acção: assim, os dez mandamentos são ditos em hebraico «as dez palavras» para indicar que exprimem simultaneamente as exigências do amor de Deus e a ajuda que Ele dá para os cumprir. O Senhor diz o que faz e faz o que diz. No A.T anuncia aos filhos de Israel a vinda do Messias e a instauração de uma nova aliança; no Verbo feito carne realiza as Suas promessas muito alem do esperado. O Primeiro e o Novo Testamento narram-nos a história do Seu amor por nós, segundo um caminho com o qual Deus educa o Seu povo para o dom da aliança cumprida: o A.T ilumina-se no Novo e o Novo é preparado pelo Antigo! Como poderia a árvore do cumprimento existir sem a raiz da qual provém? «Se é santa a raiz, também o serão os ramos… Toma consciência de que não és tu que trazes a raiz, mas é a raiz que te traz a ti» (Rom. 11, 16 e 18). Por isso, discípulos de Jesus, amamos as Escrituras que Ele mesmo amou!

19.1.07

«A Palavra para viver»: a Sagrada Escritura e a beleza de Deus

(Ilda David', No princípio...Gn 1,1, 2006)

«A Palavra para Viver» é a nova carta pastoral que o Bispo Bruno Forte escreveu para o Ano pastoral de 2006/2007; tem por subtitulo «a Sagrada Escritura e a beleza de Deus». Aqui fica, como mergulho nas águas profundas, perigosas e sedutoras da beleza e da palavra de Deus, a tradução, diária, de um número dessa carta.






«Tentemos perceber conjuntamente o que é a Palavra de Deus: se o perceberes verdadeiramente, com a mente e o coração, sentirás necessidade de escutar as palavras nas quais é o próprio Deus a falar-te, oferecendo-te luz para te conheceres a ti mesmo na verdade, sapiencia para discernires os sinais da Sua presença, força que te torne capaz de Lhe dizer, por outro lado, as tuas palavras de amor, que sejam voz da tua oração, confissão da tua fé humilde, canto no canto da Igreja inteira, que da palavra nasce e da Palavra é chamada a fazer-se testemunha até aos confins da terra».

A PALAVRA PARA VIVER A Sagrada Escritura e a beleza de Deus
Carta pastoral para o ano de 2006/2007

1. Porquê uma carta sobre a Palavra de Deus?

Pensei escrever-te uma carta sobre a Palavra de Deus porque estou convencido que na nossa sociedade complexa esteja a acontecer qualquer coisa semelhante a quanto vem descrito no livro do Profeta Amos: «Virão dias — diz o Senhor Deus— em que mandarei a fome sobre a terra, não fome de pão, nem sede de água, mas de escutar a palavra do Senhor» (8,11). Reconheço esta fome na necessidade de amor que está em cada um de nós, homens e mulheres deste tempo «pós-moderno», cada vez mais prisioneiros das nossas solidões. Só um Amor infinito pode acalmar a espera que arde dentro de nós: só o Deus que é Amor pode dizer-nos que não estamos sós neste mundo e que a nossa casa está na cidade celeste, onde não haverá mais dor nem morte. «Daquela cidade -— escreve Agostinho— o Pai nosso enviou-nos cartas, fez-nos chegar as Escrituras, para que em nós se acenda o desejo de regressar a casa» (Comentário aos Salmos 64, 2-3). Se perceberes que a Bíblia é esta «carta de Deus», que fala mesmo ao teu coração, então te aproximarás a ela coma trepidação e o desejo com o qual o amante lê as palavras da pessoa amada. Então, o Deus, que é Pai e Mãe no amor, falar-te-á mesmo a ti e a escuta fiel, inteligente, humilde e suplicada de quanto Ele te diz saciará pouco a pouco a tua necessidade de luz, a tua sede de amor. Aprender a escutar a voz que te fala na Sagrada Escritura é aprender a amar: a Palavra de Deus é a boa nova contra a solidão! Por isso, a escuta das Escrituras é escuta que liberta e salva.

18.1.07

Martirológio ecuménico: 18 de Janeiro






As Igrejas recordam...

CATTOLICI D' OCCIDENTE:
Fabiano (+250), papa e martire (calendario ambrosiano)
Sulpicio il Pio (+646), vescovo (calendario mozarabico)

COPTI ED ETIOPICI (9 tubah/terr):
Abramo di Scete (VII sec.), monaco (Chiesa copta)

LUTERANI:
Ludwig Steil (+1945), testimone fino al sangue in Vestfalia

MARONITI:
Atanasio (+373), vescovo e confessore
Cirillo di Alessandria (+444), vescovo
Cattedra di san Pietro a Roma

ORTODOSSI E GRECO-CATTOLICI:
Atanasio e Cirillo, arcivescovi di Alessandria
Gioacchino I (XIII sec.), patriarca di Tarnovo (Chiesa bulgara)

SIRO-OCCIDENTALI:
Simeone di Qartmin (+433), monaco

SIRO-ORIENTALI:
Cattedra di san Pietro, apostolo (Chiesa malabarese)

cfr. Comunità di Bose, Il libro dei testimoni,
Edizioni San Paolo, Milano, 2002

Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos





O diálogo entre as várias Igrejas cristãs tem conhecido desenvolvimentos positivos, apesar das divergências históricas que dificultam, muitas vezes, o desejado caminho para a unidade. A convicção é manifestada pelo homem do Papa para o diálogo ecuménico, Cardeal Walter Kasper, no início da semana de oração pela unidade dos cristãos.

Para este responsável, é possível verificar o crescimento de um “ecumenismo de vértice”, nos grandes encontros de líderes das Igrejas, e do “ecumenismo de base”, no quotidiano das várias comunidades eclesiais. Estas duas realidades estão interligadas, segundo o Cardeal Kasper, “como duas faces da mesma moeda”.

O presidente do Conselho Pontifício para a promoção da unidade dos cristãos refere à SirEuropa (www.agensir.it) que o ano de 2006 ficou marcado por vários passos em frente: foi retomado o diálogo teológico com as Igrejas Ortodoxas, o Papa visitou a Turquia, o Arcebispo Ortodoxo de Atenas veio a Roma e o Primaz da Igreja Anglicana visitou Bento XVI.

Apesar das divergências dogmáticas que permanecem com as Igrejas do Oriente sobre o ministério do Papa e das diferenças de cultura e mentalidade, o Cardeal Walter Kasper acredita que o caminho está mais fácil, classificando como “histórica” a visita do Primaz grego, Christodoulos.

Já na relação com as Igrejas da Reforma, têm crescido os desentendimentos em relação a temas como “a homossexualidade, o divórcio e a eutanásia”.

A convicção que permanece, contudo, é de que é possível “chegar à unidade perfeita” com as Igrejas do Oriente e “colaborar com grupos importantes presentes nas Igrejas protestantes”.

O próprio Bento XVI, no discurso que proferiu perante aos participantes na sessão plenária do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos, a 17 de Novembro de 2006, manifestava “grande esperança pelo caminho futuro” no diálogo com as Igrejas Ortodoxas, apelando ao “respeito pelas legítimas variedades teológicas, litúrgicas e disciplinares”.

Quanto às Comunidades eclesiais do Ocidente, o Papa não foi tão optimista, assinalando que “surgiram várias importantes problemáticas, que exigem um aprofundamento e um acordo”.

“Subsiste, acima de tudo, a dificuldade de encontrar uma concepção comum sobre a relação entre o Evangelho e a Igreja e, a este propósito, sobre o mistério da Igreja e da sua unidade, assim como sobre a questão do ministério da Igreja”, assinalou.

Surgiram, por outro lado, “dificuldades no campo ético, com a consequência que as diferentes posições assumidas pelas Confissões cristãs, sobre as correntes problemáticas, reduziram a sua incidência orientativa diante da opinião pública”.

17.1.07

Antão Abade; Antão, o Grande; Antão, o Egípcio; Antão do fogo; Antão do deserto; Antão, o anacoreta: pai do monaquismo

(Hieronymus Bosch, As tentações de Santo Antão, 1505-1506,
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa)

«chamavam-lhe o amigo de Deus»: Santo Antão, Abade



«Rezava constantemente, pois aprendera que é preciso rezar interiormente sem cessar, era tão atento à leitura que nada lhe esquecia do que tinha lido na Escritura: tudo retinha de tal maneira que a sua memória acabou por substituir o livro».
(Santo Atanásio, Da vida de Santo Antão, sec. IV)

Odisseia da Vida


A maravilha da gestação da vida humana pela primeira vez em 3D com imagens impressionantes sobre o desenvolvimento do bebé no mundo intra-uterino.
A Odisseia da Vida retrata os nove meses de espetacular aventura, comum a todos nós: a génese da vida humana.
Esta odisseia da vida é constituída por dois mundos:
- O mumdo do futuro bebé: através de um aporado controlo científico, descobrimos o desenvolvimento do bebé no mundo intra-uterino.
- O mundo da futura mãe: os dramas diários, as emoções e reflexões sobre a gravidez e a relação dela com o futuro filho.

15.1.07

"Eu chorava por não ter sapatos até que um dia encontrei um homem que não tinha pés."
[Autor desconhecido]

13.1.07

II DOMINGO DO TEMPO COMUM

(Giotto, Bodas de Canã, Cappella degli Scrovegni, Pádua, sec. XIV)


Na festa da Epifania do Senhor a Igreja que não conhecia a divisão celebrava ao mesmo tempo a manifestação de Jesus aos Magos, isto é às gentes, a manifestação ao povo de Israel, com o Baptismo, e a manifestação de Jesus aos seus discípulos, com as Bodas de Canã. Este ano a liturgia faz-nos contemplar os três grandes mistérios na epifania e nos dois domingos sucessivos: por isso, antes de iniciar a escuta continuada da boa nova no Evangelho de Lucas, hoje paramos diante de uma página do quarto evangelho, «o início dos sinais operados por Jesus» no episódio acontecido em Canã da Galileia.

Segundo o quarto Evangelho, o evangelho outro com relação aos sinópticos, a actividade pública de Jesus começa com um «sinal», uma acção que, numa leitura superficial, pode aparecer-nos estranha. Em Canã, obscura aldeia da Galileia, celebra-se uma festa de matrimónio —que segundo os usos do tempo durava vários dias— na qual está presente a mãe de Jesus. Mais tarde chega Jesus com os seus discípulos. Mas quem são os esposos? Porque não se diz nada deles? Porque não intervêm? Este estranho silêncio é para nós um convite a compreender em profundidade a narração: trata-se de descodificar uma mensagem exposta em linguagem simbólica…

E então, no decorrer deste matrimónio começa a faltar o vinho, e isso ameaça gravemente a alegria convivial. A mãe de Jesus dirige-se a ele e diz-lhe: «Não têm vinho». Maria não pede nada, não impõe ao filho o que ele deve fazer; expõe simplesmente a situação, respeitando plenamente a sua liberdade e remetendo-se à sua iniciativa. Jesus reage de modo duro, parece até não reconhecer a ligação de sangue que existe entre si e sua mãe. Chama-a de «mulher», como se fosse para ele uma desconhecida, e distancia-se dela afirmando: «que há entre mim e ti?». Mas estas palavras adquirem um significado diverso para quem recorda que, no momento de iniciar a sua missão, Jesus tinha deixado já a casa e a mãe, formando com os seus discípulos uma nova família (cf. Mc 3,20-21.31-35)…

Depois Jesus acrescenta: «A minha hora ainda não chegou», palavra enigmática, antecipação de um outro tempo que virá, a sua «hora» (cf. Jo 12,23; 13,1; 17,1): aquela na qual através da sua morte e ressurreição serão celebradas as núpcias definitivas entre Jesus, o Esposo, e a humanidade inteira… A partir do dia das núpcias de Canã Jesus começa a caminhar ao encontro dessa hora e dá inicio ao seu caminho com um sinal eloquente. Sua mãe diz aos servos: «Fazei o que ele vos disser», mostrando-se totalmente obediente ao Filho e pedindo que a sua palavra seja escutada e realizada: e logo a água que estava em algumas ânforas para um ritual de purificação se muda em vinho abundante. E então é possível a festa plena, o início do tempo de noivado entre Jesus e a sua comunidade, a sua esposa (cf. 2Cor 11,2; Ef 5,31-33), profecia das suas núpcias com toda a humanidade… Por isso o evangelista comenta que com aquele primeiro gesto «Jesus manifestou a sua glória e os seus discípulos acreditaram nele»: as verdadeiras núpcias aqui celebradas são as de Cristo com a Igreja, através do vinho abundante do Reino de Deus, das núpcias messiânicas (cf. Is. 25,6)… Não é por acaso que, logo depois deste acontecimento, João baptista poderá definir-se o «amigo do esposo» (Jo 3,29) já chegado; mais, escutando a voz do Esposo que fala à esposa, isto é à comunidade dos discípulos já passados de João a Jesus, eles exultarão de uma alegria inexprimível…

Jesus é o esposo messiânico, vindo para celebrar as núpcias com a sua comunidade, com aqueles que, aderindo a ele com toda a sua vida, procuram ser a esposa que Deus desde sempre procura e ama: mas nós cristãos temos consciência de ser a comunidade-esposa de Cristo Jesus? Compreendemos que em cada domingo na liturgia eucarística somos convidados a celebrar a nossa aliança terrena com o Senhor, na esperança da sua vinda na glória (cf. Ap 22,17-20)?

Enzo Bianchi
Prior de Bose
(tradução de Mário Rui de Oliveira)

A dignidade de crer


Em tempo de debate sobre o valor incondicional de cada vida humana, sobretudo das mais desprotegidas, sobressai, de novo, a questão da pertinência pública da fé cristã. Ora, sabemos que determinada modernidade pretendeu eliminá-la, precisamente na medida em que lhe recusou «dignidade», pelo menos da parte de um humano suficientemente adulto e racional. Essa recusa foi, sem dúvida, causa de muitos problemas, inclusivamente para os cristãos que se fecharam na sua individualidade ou na sacristia das suas decisões e devoções. Mas também pode ser acolhida como desafio a repensar a dignidade de uma opção e de um modo de ver e de pensar profundamente humanos e, por isso, profundamente dignos.
Os cristãos das nossas comunidades, hoje portadores de formação mais alargada, estão no momento de recuperar a consciência da dignidade do «crer» - a exemplo de muitas mulheres e homens de grande formação e empenho sócio-político, que não têm problemas em confessar a sua fé e em assumir as consequências disso resultantes.
O saliente teólogo de Burgos, Eloy Bueno de la Fuente, publicou um livro, acessível também a não-teólogos, que pode ajudar a reformular a «dignidade do crer», em tempos desafiantes. Partindo dos actuais desafios do ateísmo, do paganismo e do pós-cristianismo, formula a pertinência do crer, centrando-se sobretudo na categoria da alegria - que pode e deve ser vivida, quer na complexidade das relações sociais, quer mesmo na eventual perplexidade das relações eclesiais.
E. BUENO DE LA FUENTE, La dignidad de creer, Madrid: BAC.

Um Blogue a favor do Não


«Tem sentido legalizar hoje o aborto?
Estamos à beira de um novo referendo sobre a legalização do aborto e importa conhecer bem a natureza da mudança proposta para que todos opinemos segundo a nossa consciência, sem nos ensarilharmos em chavões simplórios e gritarias irracionais.

Ao contrário da actual lei, que ainda reconhece haver, desde o princípio, dois bens jurídicos em causa, a vida da mãe e a do bebé que nela começou a desenvolver-se, a alteração proposta determina que, até uma determinada data de gestação, só a primeira dessas vidas existe e tem direito a protecção. O embrião com menos de 10 semanas pura e simplesmente desaparece da ordem jurídica, como se fosse mera parte do corpo da mulher sobre a qual esta pode dispor como entender. A partir das 10 semanas, no entanto, a lei continuará a catalogar como crime o aborto provocado, naturalmente persistindo em perseguir os seus autores: para usar um dos chavões mais repetidos ultimamente, a lei a referendo – apesar do que por aí se diz – continuará a “mandar mulheres para a prisão”… (João Paulo Barbosa de Melo
Mandatário do Grupo Cívico em constituição “Aborto a Pedido? NÃO!”, in Jornal Publico)

11.1.07

Aporias de um debate (5)


(Fotografia de Anne Geddes)


A dança das palavras está aí, nas manifestações públicas, nas opiniões exaradas na imprensa, nos slogans dos cartazes (outdoors), nos debates televisivos, nos comentários da rádio, nas conversas de rua, nas cavaqueiras em família e entre amigos: despenalização, descriminalização, legalização, humilhação torpe da mulher, hipocrisia dos adeptos de uma e outra “bancada”, indiferença gélida face ao futuro de crianças “para quem teria sido (ou será) melhor não nascer”…
E como tópico recorrente aí aparece a Igreja sob a acusação coral de se “meter onde não é chamada”, de ter “um coração de pedra” face aos dramas da mulher, de assumir uma posição hipócrita como a dos fariseus no tempo do seu fundador, de Jesus de Nazaré, de radicalismo insanável nos seus pronunciamentos, de intolerância inaceitável num tempo de democracia.
Nalguns casos, onde os católicos têm o tempo de antena indispensável para esclarecerem as posições reais da Doutrina da Igreja, ouvem-se exclamações de surpresa por parte do interlocutor laico e laicista. E para superar o embaraço provocado pela surpresa de verificar que, afinal, a posição da Igreja não é tão intolerante, tão obscurantista, tão hipócrita, tão cientificamente ignorante… acontece, às vezes, que o interlocutor assume as vestes de juiz severo e sentencia: “Mas isso é o que alguns padres mais progressistas dizem; a Igreja não prega isso!” Surpresa chama surpresa: pacientemente temos, então, de apelar à paciência do “adversário” para ler os documentos, numerosos e profundos, do magistério da Igreja, de forma a não construir confrontos inúteis, quais D. Quixotes a combater moinhos de vento que não existem. Este é um dos mais graves e paralisantes handicaps para um diálogo esclarecedor entre crentes e não crentes, entre católicos e laicos, entre Igreja e Sociedade. Alguns bons pensadores do mundo laico elaboram a sua argumentação baseados num presumido pensamento da Igreja, mas que, sem culpa (espero!), desconhecem totalmente. E, nestes casos, o mea culpa pertence-nos, a nós cristãos, leigos, sacerdotes, bispos. Saberemos sempre apresentar de forma séria, persuasiva, estudada e em respeito pela diferença a riqueza que a Igreja nos oferece, nas suas palavras, nos seus gestos e nas vivências da sua longa e atribulada história? Creio que não.
Nestes apontamentos breves é impossível equacionar, e muito menos explanar, de forma adequada, temas tão amplos. Vamos fazendo-o por etapas, na esperança de quem ler este apontamento tenha lido os anteriores e não perca o interesse de ler os seguintes; aliás, teria dificuldade em descobrir o horizonte destas reflexões, que são, sublinho, interligadas e feitas por etapas. Hoje, deixaria apenas estas notas:
A Igreja criminaliza, penaliza, culpabiliza a mulher que recorre ao aborto? Absolutamente não. Não criminaliza, embora considere o aborto um crime contra a vida e contra o direito à mesma dum ser frágil e indefeso; alguma vez a Igreja levou uma mulher nestas circunstâncias ao tribunal? Não é o poder judicial do Estado que as julga e condena ou absolve? A Igreja, denunciando a gravidade do pecado contra o 5.º Mandamento -- Não matarás (Êx 20, 12; Deut 5, 17) --, absolve, no arrependimento, a penitente. E faz mais: acolhendo com compreensão de mãe, como discípula d’Aquele que disse à adúltera “Mulher, ninguém te condenou? Também eu não te condeno; vai e não voltes a pecar” (Jo 8, 11), a Igreja esforça-se por praticar uma pedagogia pastoral que liberte a mulher do labirinto da culpa, e que a reconcilie consigo mesma e com a vida. Em muitos casos, é apenas no segredo de uma confissão que o drama é comunicado e partilhado, fazendo assim o papel, gratuitamente, duma consulta psiquiátrica ou psicológica! E, em não raros casos, é o sacerdote que, com a discrição que a confidência impõe, encaminha a pessoa para o consultório de um especialista das profundezas da alma, da psiché! Se isto é intolerância, indiferença, hipocrisia, deixo o juízo ao amigo e condescendente leitor. Diria apenas que não somos contra, mas a favor. Mas sabendo que a nossa linguagem não deve ser “sim e não”, mas “sim, sim; não, não” (ver Mt 5, 37) porque o “Filho de Deus […] não foi um sim e um não mas unicamente um sim”, n’Ele “as promessas de Deus tornaram-se um amen” (2Cor 1, 17-20), ser sim é, muitas vezes, dizer não, com a coragem do profeta solitário, porque incompreendido e recusado, mas solidário com o verdadeiro destino do homem. Não se pode dizer sim a uma “cultura da morte” se a opção for dizer sim à vida. Neste caso, o sim e o não são totalmente incompatíveis. Na dor do coração que os dilemas sempre acarretam, há que saber dizer não para que o sim seja sincero, fecundo e ao serviço do verdadeiro bem do homem.

Luís Esteves

10.1.07

Pastoral Familiar


A Pastoral Familiar é toda a acção ou intervenção da Igreja em favor da Família, acompanhando-a passo a passo nas diversas etapas da sua formação e desenvolvimento, através das suas estruturas e dos seus responsáveis e agentes.
A Pastoral Familiar incidirá sobre as famílias cristãs e não cristãs.
A acção pastoral terá em vista a defesa, a preparação e o desenvolvimento da Família, nomeadamente nos domínios da estabilidade conjugal e familiar, do adequado exercício das suas funções e da resolução das situações difíceis ou irregulares nas relações entre os seus membros ou nas relações da Família com a sociedade.

Objectivos:

- Tornar clara a ideia de que uma pastoral familiar é urgente e necessária. No contexto actual em que a família é fortemente contestada, deve a Igreja, através dos seus membros, clarificar ideias, propor caminhos e empenhar-se na construção da família.
- Lutar pela família, nomeadamente numa preparação alargada e eficiente para o matrimónio vivendo o sacramento de uma forma marcante com os noivos e acompanhando depois os casais, na vida comum ou nas situações especiais.
- Propor, a nível diocesano de uma forma estruturada, uma acção em favor da família, para que casais, paróquias e movimentos, colaborando uns com os outros, ajudem a família a reencontrar-se e a ser feliz.

9.1.07

Aporias de um debate (4)

(fotografia de Anne Geddes)

A polémica parece ter-se instalado: o aborto é ou não uma questão religiosa? Para uma concepção positivista do direito e das leis, para uma tendência crescente que pretende “encerrar o religioso nas catacumbas de uma sacristia”, para uma laicidade que seria indispensável se não se confundisse com laicismo, as questões de consciência são para serem debatidas no solilóquio da esfera privada do indivíduo e não devem perturbar o funcionamento autónomo dos mecanismos legislativos de um sistema democrático.
Ora, no respeito total da autonomia das realidades terrestres que a Igreja não apenas tolera mas promove contra todo o tipo de integrismo, laico religioso ou eclesiástico (Concílio Vaticano II, Gaudium et spes), na reconhecida soberania, primeiro do povo e depois dos órgãos por ele eleitos, a Igreja tem o dever de não se calar a respeito de tudo e qualquer coisa que diga respeito aos destinos do homem. À religião, com as suas comunidades --igrejas, sinagogas, mesquitas… -- nada do que é humano lhe é estranho. Para os católicos, o saudoso Papa João Paulo II traçou na sua Encíclica inaugural (O Redentor do Homem) o axioma teológico e pastoral: «O homem é o caminho quotidiano da Igreja» (n.º 14), na clarividente consciência de que «o mistério do homem só se esclarece à luz do mistério do Verbo Encarnado» e de que a comunhão íntima do Deus em quem acreditamos, a Santíssima Trindade, «abre horizontes insuspeitados» para a convivência humana entre indivíduos, instituições, povos e nações.
A Igreja ao pronunciar-se sobre questões tão decisivas para o ser humano, como a do direito à vida, não “mete foice em seara alheia”, antes cumpre a sua indeclinável missão de estar ao lado da vida ameaçada, fragilizada, dos que não têm vez nem voz nos jogos dos palácios do poder. Para um crente, tudo tem a ver com a religião e a religião tem a ver com tudo (religio vem de religare), porque ela exige uma defesa intransigente, serena e dialógica, da dignidade do homem.
Mas, para que a Igreja e outras comunidades religiosas tenham legitimidade e credibilidade para intervir, não podem confundir a sua actuação com qualquer campanha de tipo partidário, ou que sugira, aos menos lúcidos, a suspeita de que estão a pretender substituir-se aos órgãos legítimos dum sistema político, que até defende a independência e autonomia de três poderes -- judicial, legislativo e executivo. Concretamente, a Igreja Católica tem plena consciência do nível próprio e específico das suas intervenções a favor do homem, de todo o homem concreto e histórico, na opção preferencial pelo mais pobres e esquecidos pelos poderes instituídos.
João Paulo II, na sua Encíclica Evangelium vitae, define, com clareza insofismável, o horizonte das análises, das denúncias, das propostas e das intervenções da Igreja afastando os fantasmas de combates ideológicos ou político-partidários. São de recordar as suas palavras para bem do “esclarecimento das consciências”, do bom entendimento das instituições, e, eventualmente, para corrigir equívocos que tanto podem vitimar representantes da Igreja como do mundo político, cultural, da comunicação social e da intervenção cívica: «A presente Encíclica -- escreve o Papa da Família -- (…) quer ser uma reafirmação clara e firme do valor da vida humana e da sua inviolabilidade e, ao mesmo tempo, um apelo apaixonado dirigido a todos e a cada um, em nome de Deus: respeita, defende, ama e serve a vida, cada vida humana; (…) quero remeditar e anunciar o Evangelho da vida, esplendor de verdade que ilumina as consciências, límpida luz que cura o olhar obscurecido, fonte inexaurível de constância e coragem para enfrentar os desafios sempre novos que encontramos no nosso caminho» (5-6). «Jesus é o único Evangelho» com um centro e suas consequências (80-81).
Face a estas premissas, diria epistemológicas, creio não ser possível, se não por má vontade ou preconceito invencível, cair na tentação de confundir as intervenções da Igreja com uma qualquer campanha política ou, por inconsciência, assumir comportamentos e escolher estratégias, por parte de cristãos, que, em última análise, não respeitam os critérios definidos pela doutrina da Igreja, facto que gera inevitavelmente confusões dolorosas para todos os intervenientes empenhados em defender a vida, prevenir situações que empurram para escolhas negativas, cuidar de toda a vida e da vida de todos, numa afirmação positiva que não é contra ninguém ou algo, mas a favor da dignidade do ser humano em todo o seu percurso histórico.
Sinceramente tenho de confessar que, nos debates a que se tem assistido, há mais poeiras que provocam o caos da confusão que luzes serenas que alumiam o caminho difícil que passa pelos nocturnos dramas dos enigmas intrincados da existência e da convivência humana. O desafio à lucidez, à sinceridade, ao diálogo sem tabús, respeitador das diferenças, está lançado a todos, e, em particular, àqueles que detêm uma responsabilidade maior na defesa do bem comum e da formação das consciências dos crentes e dos cidadãos.

Luís Esteves

O seio de Deus


"Entrar no seio de Deus" é uma expressão que se encontra na Bíblia. A Bíblia é um livro que a maior parte das pessoas não lê, tão espesso que parece uma floresta abandonada, invadida pelo mato e percorrida por animais selvagens que vivem longe do olhar dos homens. Achei durante muito tempo que esta expressão era apenas uma liberdade poética, projectando uma bela luz, uma entre milhares que encontramos na Bíblia e nas florestas ao abandono. Só esta manhã, ao ver os pardais mergulhar às dezenas na folhagem perfumada da tília, percebi por fim o que era o seio de Deus e que delícia podia ser entrar nele um dia.
Christian Bobin, Ressuscitar, ed. Tenacitas, Coimbra 2006, 41

8.1.07

Um livro...


John Daily, um homem de negócios bem-sucedido, apercebe-se subitamente que está a falhar, como chefe, marido e pai. Numa tentativa desesperada de retomar o controle da situação, decide participar num retiro sobre liderança, a decorrer num mosteiro beneditino e organizado pelo monge Leonard Hoffman, um influente empresário americano que abandonou tudo em busca de um novo sentido para a sua vida.
A princípio, Daily e os outros cinco alunos que participam do seminário reagem com cepticismo, especialmente quando o monge lhes apresenta um conceito inaudito: que a base da liderança não é o poder, mas a autoridade, conquistada com amor, dedicação e sacrifício. Ou seja: para liderar, é preciso estar disposto a servir...

7.1.07

A Biblioteca Digital Intratext: www.intratext.com


A Biblioteca Digital IntraText é, na verdadeira acepção da palavra, uma biblioteca, gerida por pessoas especializadas e que publica, com preocupação científica, textos, periódicos, Opera Omnia, arquivos, de grande qualidade editorial e com facilidade de consulta, ao nível das melhores edições publicadas. Ainda que não se trate de um site de exclusivo interesse para os cultores do Direito Canónico pensamos ser um óptimo modo de começar esta rubrica pelo seu carácter eminentemente universalista.
O site www.intratext.com publica textos de temática religiosa, filosófica, literária e científica em mais de trinta línguas com um aggiornamento constante, oferecendo a possibilidade de criar secções personalizadas e de publicar a baixo custo textos e recolhas, oferecendo produtos editoriais e consultadoria científica e serviços para projectar e realizar obras na internet e em CD-ROM (obras de fundadores de Institutos religiosos, grandes recolhas de textos e documentos), bem como uma solução global para realizar e gerir grandes bibliotecas digitais.

2. O Código de Direito Canónico e outros temas afins no site

O Código de Direito Canónico e o Código dos Cânones das Igrejas Orientais estão disponíveis em nove línguas europeias, com excepção do português: latim; francês; inglês, espanhol; italiano; polaco, romeno; eslovaco, alemão. De relevar que nenhuma das versões do CIC comporta a modificação operada pelo Motu proprio Ad tuendam fidem, com a importante omissão, por isso, das alterações ao cân. 750 (que no site não apresenta a subdivisão em dois parágrafos) e cân. 1371, 1º (que não faz referência ao cân. 750 §2). Também somente o texto italiano e alemão apresentam a Constituição Apostólica Sacrae disciplinae leges. Preciosa é a presença de algumas obras de Gregório IX entre as quais as Decretalium compilatio.
Além destes elementos podemos reter como úteis para a acção do canonista o Enchiridion vaticanum com textos de muitos Romanos Pontífices (mais de 35 Papas), de Concílios (21 concílios contando com o de Trento, Vaticano I e II) e de Congregações Romanas, bem como a presença do próprio Catecismo da Igreja Católica, apresentado em várias línguas mão não em português, e da Constituição apostólica Pastor bonus.

Aporias de um debate (3)

(foto de Anne Geddes)

Que pode significar a afirmação de que “o aborto é uma questão de consciência”? Em todas as intervenções quer dos defensores do “não” quer dos do “sim” não vi nem ouvi ninguém a pôr em causa este princípio. Contudo, o tipo de argumentação não é, de forma alguma, coincidente e, em muitos casos, é antitético, fazendo concluir do princípio aceite por todos posições totalmente diferentes senão opostas. Os Bispos portugueses na Nota pastoral (Cinco) Razões para escolher a vida dizem propor-se «esclarecer as consciências», sublinham que o debate que antecede o referendo não pode ser «uma qualquer campanha política», mas sim «um período de esclarecimento das consciências», e acentuam que «a escolha no dia do referendo é uma opção de consciência».
Isto não significa, como alguns pretendem fazer crer, que, sendo o aborto uma questão de consciência, deve ficar limitado ao foro íntimo das convicções e opções de cada pessoa, que não pode lutar em praça pública por uma opinião sobre a legislação atinente. Ou seja, o cidadão teria o direito de pensar o que quiser mas não poderia manifestá-lo para não agredir a consciência do outro que pensa de modo diferente nem condicionar com a sua “propaganda” a opção livre de cada um. É certo que a “consciência” é a fonte próxima da moralidade, e, por isso, critério irrecusável na hora da decisão: pensar e agir segundo a sua consciência é um direito e um dever da pessoa humana. Mas isto não impede, antes exige, a assumpção da responsabilidade de justificar, de “dar as razões” das suas convicções. Aliás, cair-se-ia na pura arbitrariedade que é o contrário do livre arbítrio e duma autêntica liberdade.
O homem tem o direito e o dever de formar a sua consciência segundo princípios éticos e morais justos e valores essenciais da existência humana. Só assim confere a si próprio a possibilidade dum exercício responsável do intocável santuário da sua íntima consciência. Formar não é impor ao outro as suas convicções; é, antes, procurar juntos a Verdade, em diálogo franco, sério, respeitador das diferenças, em debate apaixonado, não agressivo ou insultuoso, conscientes de que a Verdade é maior dos que as certezas de cada um, transcende-nos, dela não somos donos nem administradores mas eternos peregrinos, que vão descobrindo verdades parciais que apontam na direcção da Verdade, que é bondade, beleza e sentido do existir, do decidir e do agir.
Uma liberdade sem a responsabilidade, ou seja, a capacidade de responder por si ao outro e, na fraternidade, responder pelo outro, é vazia de conteúdo e pode tornar-se num slogan ao serviço do marketing político, ideológico mas não, decididamente, ao serviço da humanidade dos homens. A consciência é pessoal, inviolável, mas não é privada nem privatizável; ela é a abertura do homem à alteridade: à Verdade que ultrapassa a todos e que a todos os que a buscam com paixão se desvela, ao outro diferente de mim mas com igual dignidade. É esta verdade que nos faz livres e que alimenta um digno exercício da consciência como fonte de moralidade. Mas não se esqueça que a consciência é inviolável mesmo que esteja errada. O empenho em esclarecer as consciências é um serviço à verdade do homem e não a oportunidade de o manipular, de o constranger, de o modelar à minha imagem, de operar “uma lavagem ao cérebro”. Sem espírito de diálogo, de abertura às razões do outro, de paciência face à indiferença ou arrogância do interlocutor, a verdade oculta-se e revelam-se as tendências do “homem velho”, manipulador, tirano, egolátrico, adorador de sistemas totalitários de pensamento.
Uma questão de consciência que deve conduzir sempre à consciência da questão. Uma consciência que deixou de procurar a verdade, a bondade e a beleza já morreu. Uma consciência livre, que garanta substância à liberdade de consciência, não pode deixar de olhar para além de si, de contemplar o outro e a verdade do outro e, em última análise, de se deixar interpelar pelo Outro, aceite na fé ou oculto, mas não inactivo, em todos os que buscam a verdade de “coração sincero”. É neste horizonte que se pode afirmar que “o aborto é uma questão de consciência” para os conscientes da sua responsabilidade de pensar e viver. Para os inconscientes que sentido teria falar de consciência?

Luís Esteves

6.1.07

Epifania do Senhor



Celebramos hoje a Epifania do Senhor, ou seja a sua manifestação, a revelação às gentes de todo o mundo do menino nascido em Belém. Jesus foi dado à luz por Maria, a pobre filha de Israel, e os pastores, correndo à palavra que lhes foi dirigida pelo anjo, viram «um menino envolto em lençóis deposto numa manjedoira» (cf. Lc 2,7.12.16). Nascido em Belém, a cidade de David (cf. 1Sam 16), Jesus é descendente de David a quem diz respeito o titulo de Messias, de Rei dos Judeus; mas mesmo o evangelho de Mateus, assim radicado em ambiente judaico, coloca em evidencia que Jesus é o Salvador destinado a toda a humanidade e, portanto, a sua revelação é dirigida a todas as pessoas, aos pagãos, em cuja descendência também nós estamos inseridos.

Conhecemos bem o excerto evangélico que narra esta manifestação, desde sempre presente na tradição cristã, qual texto capaz de surpreender e iluminar o coração dos crentes de todos os tempos. Do oriente alguns Sábios, os Magos, vêm a Jerusalém, a cidade santa dos Judeus, numa espécie de peregrinação (cf. Is. 60, 1-6). Eles não pertencem à descendência de Abraão, não conhecem o Deus vivente e verdadeiro, não são circuncisos, não fazem, portanto, parte da aliança que tem como sinal esta incisão na carne. Na sua viagem não é portanto a Palavra de Deus a conduzi-los; e no entanto a sua busca de Deus, a sua luta anti-idolátrica, o seu meditar e perscrutar os sinais da natureza, concede-lhes a possibilidade de uma leitura visionária, que os impele a partir seguindo apenas a luz de uma estrela…

Obedientes à consciência nascida pela sua investigação, os Magos sobem a Jerusalém, decididos a interrogar a sapiência revelada a Israel, na esperança de ver preenchida a sua expectativa. Os sumos sacerdotes e os escribas, depositários da missão de intérpretes das profecias, respondem infalivelmente, embora permanecendo no escuro, cegos diante do cumprimento do evento messiânico, perturbados e cegos como o Rei Herodes. E assim recordam-nos que podemos ser muito profissionais no proteger o tesoiro das Escrituras santas, zelosos das nossas certezas de fé, e ao mesmo tempo sermos incapazes de reconhecer que Deus age e opera no nosso hoje e nos «visita constantemente, nos modos mais imprevisíveis… Ora, as Escrituras testemunham que o Rei dos Judeus deve nascer em Belém (cf. Mi 5, 1-3), e os Magos, agora já obedientes também à revelação, chegam à casa onde, uma vez dentro, como os pastores, «vêem o menino com Maria sua mãe». Também eles, como os pastores, contemplam uma cena humaníssima e pobre: mas essa é a revelação para os seus corações atentos, é a manifestação que provoca a sua adoração e a oferta dos dons mais preciosos.

Esta epifania, que através dos Magos chega às gentes pagãs, reforça e não anula a primogenitura de Israel, mas mete também em evidencia que aquele menino está destinado como bênção para toda a humanidade, segundo a promessa feita outrora a Abraão: «em ti e na tua descendência serão abençoadas todas as gentes da terra» (Gen 28, 14; Gal 3,14). Sim, a universalidade da boa nova está afirmada já no momento do nascimento de Jesus, e o episódio dos Magos aparece como uma profecia que se cumprirá na história da Igreja, quando o Evangelho chegar a todas as culturas dos povos. Todas as culturas e tradição levam, de facto, em si as marcas, as «sementes» da palavra de Deus, como amavam dizer os padres da Igreja. Nessas estão presentes hálitos do Espírito santo que conduziu os homens sobre caminhos anti-idolátricos, na demanda de sentido; nesses está presente desde a eternidade a imagem de Deus que não pode nunca ser negada ou anulada (cf. Gen 1, 26-27): Jesus Cristo, «imagem do Deus invisível» (Col 1,15)…

A Epifania é a memória que Jesus, o Messias, o Filho de Deus e Filho do homem, está destinado à humanidade e que esta sabe reconhecê-lo, até participar na herança de Abraão. Não esqueçamos portanto: «em Jesus Cristo não há mais judeu nem grego» (Gal 3, 28), mas todos os homens da terra podem encontrar-se nele, «Sapiência de Deus» (1 Cor 1,24), fonte de alegria e de vida plena. Mas nós cristãos somos capazes de testemunhar a salvação definitiva trazida por Deus em Jesus Cristo, mediante um comportamento de cordial simpatia por todos?

Enzo Bianchi
Prior do Mosteiro de Bose

(tradução de Mário Rui de Oliveira)